Anos atrás, em um vídeo que ganhou destaque na internet e até hoje é lembrado, o premiado ator americano Morgan Freeman concedeu entrevista a uma rede de TV na qual afirmou: “Para o racismo deixar de existir é só parar de falar nele”. O tópico da entrevista, naquele momento, era o dia da consciência negra. Freeman, que é negro, expressou somente um sentimento pragmático dentro de um contexto pontual e óbvio: consciência, sob todos os aspectos, deveria ser uma necessidade diária; e definir uma data para que se pense apenas nos negros, além de segregação escancarada do próprio negro, é minimizar e até mesmo rejeitar, inserindo no rodapé da história as dificuldades e o sofrimento de inúmeras outras etnias. Evidente que muitos (e muitos negros) não gostaram e passaram a atacar Morgan Freeman.
Recorro a esta lembrança para falar da profundamente triste morte de Chadwick Boseman. Vítima de um câncer, o jovem e talentoso ator de 42 anos de idade conquistou o mundo vestindo o uniforme do herói Pantera Negra nos cinemas. Boseman tornou-se, assim, símbolo de uma geração – especialmente a dos jovens negros – que se viu representada e finalmente conquistava um herói para chamar de seu. É tocante e é comovente. Mas será que é assim tão absolutamente legítimo?
Com a perda precoce de Chadwick Boseman, a imprensa cumpriu seu papel em noticiar e também abriu espaço para artistas, intelectuais, pensadores e os mais diversos militantes da causa negra analisarem o fato por meio de artigos. Todos eles, certamente influenciados pela nova bandeira do marketing progressista que grita “Black Lives Matter”, bateram evidentemente na óbvia tecla de Chadwick Boseman ter sido um jovem negro que, por meio de seu personagem no blockbuster de ação “Pantera Negra”, tornou-se figura icônica da maior importância. Alguns até mesmo recorreram a lendas africanas envolvendo príncipes, reis e guerreiros para estabelecer a conexão heroica entre Chadwick e estes personagens. Sentido faz, mas é legítimo?
Talvez não quando se percebe que cada um desses articulistas enveredou-se pelo caminho da hipérbole. Ou, pior, do mero esquecimento. Falou-se muito, por exemplo, que Chadwick Boseman fez o primeiro filme de herói negro na história do cinema. Não é verdade! O Pantera Negra foi o primeiro herói negro dos quadrinhos, mas o cinema já havia adaptado para a tela grande outro personagem emblemático: Blade, meio-homem-meio-vampiro que, com sua espada, caça vampiros maléficos. Blade ficou imortalizado na interpretação de Wesley Snipes, em filme lançado em 1998. Blade inclusive ganhou um boneco colecionável – este sim o primeiro boneco de um herói negro, não o do Pantera Negra, como também afirmaram por aí.
Ainda no quesito esquecimento, o fato mais injusto é que Chadwick Boseman de repente passou a ocupar o trono da realeza, como se jamais antes qualquer outro negro o tivesse feito. Nesse sentido, não podemos nos esquecer da magnífica Hattie McDaniel, a primeira atriz negra a ganhar um Oscar, pelo filme “…E o Vento Levou”, de 1939. O que dizer então de Sidney Poitier, que depois de uma interpretação sublime em “Uma Voz nas Sombras”, de 1963, tornou-se o primeiro ator negro reconhecido pela Academia?
E existem muitos outros! Como não coroar personalidades como Gordon Parks, Richard Roundtree e Melvin Van Peebles, ícones do cinema negro dos anos 1970 com a onda do Blaxploitation? Não podemos, de uma hora para outra, simplesmente relevar a importância de nomes como Denzel Washington, Spike Lee, CCH Pounder, Halle Berry, Forest Whitaker, Eddie Murphy. Todos eles são, igualmente, heróis! Mas antes de qualquer coisa eles são a pura expressão do talento. Acredite: aqueles que realmente apreciam a arte e reconhecem somente a qualidade de seus intérpretes não ficam discutindo a cor da pele. Fato: se realmente “Black Lives Matter” – ou “Vidas Negras Importam” -, torna-se imprescindível que todas as vidas sejam lembradas. Ou, como afirmou Morgan Freeman, “para o racismo deixar de existir é só parar de falar nele”.
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