‘Todos nós vamos pagar a conta’, diz Delfim Netto sobre gastos do governo na pandemia

Aos 92 anos, Antônio Delfim Netto vê o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) como uma “piada pronta, feita com preconceitos e que nega a evidência científica.” Em entrevista exclusiva à Jovem Pan, o economista e professor elogiou a postura de Paulo Guedes à frente do Ministério da Economia — antes e durante a pandemia do novo coronavírus —, e afirmou que “todos nós” vamos pagar a conta pela disparada dos gastos públicos para conter o efeitos da crise econômica, medida que ele acha correta para o momento. “Se você comparar o Brasil com os outros países, as ações fiscal e monetária não ficam devendo para nenhum deles.” A eficiência no campo econômico, no entanto, não se repetiu em outras frentes do governo. “Nós estamos fracassando no combate à pandemia. […] Morreu mais gente do que seria razoável”, afirma.

Delfim Netto foi uma das vozes de maior relevância durante a ditadura militar, e foi protagonista em dois momentos opostos no regime: como ministro da Economia, foi o articulador do “milagre econômico”, quando o país cresceu aproximadamente 10% ao ano entre 1968 e 1973. Já no início do anos 1980, à frente do Ministério do Planejamento, não conseguiu evitar a crise que ficou conhecida como a “década perdida”. Em face de um novo período de recessão, o ex-ministro diz que é “obrigação moral” do governo a criação de um programa de transferência de renda, mas com condições para que os beneficiados não dependam dele. “Ninguém quer viver de esmola. O cidadão tem a sua própria dignidade”, afirma. Confira abaixo os principais trechos da entrevista:

Qual a síntese que o senhor faz do governo de Jair Bolsonaro? É uma piada pronta. É só você olhar que é uma piada pronta na forma política, na forma da própria administração. É uma administração feita com preconceitos, que nega a evidência científica, prisioneira de preconceito identitários. Agora não adianta chorar, a democracia é isso mesmo. Quando você for votar, lembre que isso também é correr risco. Não é [para] votar de qualquer forma, é [preciso] pensar se você vai aguentar o risco que toma quando está votando.

Qual avaliação o senhor faz sobre as ações do governo? Nós estamos fracassando no combate à pandemia. Desde o início, bateu cabeça presidente com governador, governador com prefeito. Realmente, morreu mais gente do que seria razoável. A pandemia exige medir, medir e voltar a medir, e nós fomos incapazes com relação a isso. A pandemia causou uma redução dramática e instantânea da demanda global. As pessoas ficaram em pânico, se recolheram, deixaram de gastar, de forma que teve um afundamento dramático da demanda. Simultaneamente, teve uma queda dramática também na oferta global. É um fenômeno muito raro. A queda simultânea de oferta global e demanda global produz o que nós estamos vivendo, uma depressão, uma recessão profunda, e com grandes forças deflacionárias. O importante é que, no campo econômico, você tem condições de responder a isso de uma maneira um pouco mais enérgica. A PEC de Guerra liberou a política fiscal para atender a todas as necessidades da pandemia, e simultaneamente, o Banco Central continuou a aperfeiçoar a política monetária, que já tinha começado no governo Temer, e que hoje nos levou a uma taxa de juros real de quase 1%. Essa é uma condição interessante, e mesmo por conta desse espelho da pandemia, vamos bater uma dívida pública em torno de 100%. O fato de você ter a taxa de juros real em 1% é uma esperança, porque mesmo com o crescimento pequeno de 2%, se coloca a relação dívida/PIB na direção correta.

O Tesouro Nacional projeta que a dívida pública fique próxima de 100% com os gastos para conter os efeitos da pandemia. Como, quando e quem vai pagar essa conta? Quem vai pagar a conta somos todos nós. Mas a comparação [da dívida pública] não é legítima. Todas as despesas que correspondem ao coronavírus estão autorizadas pela PEC de Guerra. Não é possível comparar o déficit que estamos fazendo hoje com o déficit que tínhamos antes, nem com o déficit que devemos fazer depois que esse negócio terminar. Será preciso juntar tudo isso e fazer um programa para absorver a dívida durante um longo tempo.

O senhor concorda com o endividamento neste momento para conter os efeitos da pandemia? O aumento do endividamento foi para atender à demanda da pandemia. Você vem de um endividamento de 75% [do PIB] para 95% em poucos meses. O governo estava, de fato, cumprindo com o seu dever moral, que era tentar minimizar o número de óbitos. Não teve sucesso no combate à pandemia, mas em manter o nível de atividade [econômica] e atender à distribuição de renda necessária para manter o sistema funcionando, acho que teve sucesso. A perspectiva de queda do PIB no início [da pandemia] era algo em 7% e 9%, e vamos terminar com uma queda um pouco abaixo de 6%. Ou seja, o sistema funcionou. Você atendeu às necessidades do SUS e manteve uma distribuição de renda que conservou boa parte da sociedade, que eram os invisíveis. Se comparar o Brasil com os outros países, as ações fiscal e monetária não ficam devendo para nenhum deles.

O senhor concorda com a agenda liberal de Paulo Guedes? Em novembro ou dezembro de 2019 e janeiro de 2020, todos acreditavam que o crescimento [do PIB] seria de 2%, 2,5%. A taxa de inflação estava controlada, a relação dívida/PIB era 75%. Nós estávamos realmente caminhando na direção certa por conta do teto que tinha sido construído no governo Temer. Uma agenda liberal é um nome só, isso é uma fake news. Na verdade, o que ele estava fazendo era o que qualquer economista bem preparado faria. Ele tem um desejo liberal, que acho muito saudável. Há certos exageros em imaginar que se possa ter um mercado sem Estado, o que é um absurdo. O mercado é simplesmente o instrumento, e não existe sem o Estado, porque ele precisa da propriedade privada. A propriedade privada não é um direito natural, ela só pode existir com a garantia do Estado. Portanto, os mercados só existem quando há garantia do Estado, porque dá a eles as condições de funcionamento.

Quais pontos o senhor destacaria da agenda pré-pandemia? O benefício ao país era que estava voltando a crescer, conservando a taxa de juros baixa, mantendo a dívida pública sob controle, respeitando a regra do teto. Estava na direção certa, sim. É claro que isso desagrada algumas pessoas que imaginam que gastar é vida.

Mesmo com a economia fragilizada, o governo Jair Bolsonaro anunciou o desenvolvimento de um programa social que irá abranger mais de 20 milhões de pessoas. O senhor acredita que esse tipo de ação é viável? Isso não é um desejo do governo, é uma obrigação moral. Ele tem que produzir um sistema de sustentação mínima durante o período que estamos vivendo, e instituir junto com esse programa de renda mínima um mecanismo de progressão. Ninguém quer viver de esmola, o cidadão tem a sua própria dignidade. Ele só é cidadão quando está ganhando a vida trabalhando. Ele não está trabalhando porque não pode, porque não há demanda. É contra isso que o governo está agindo, e vai ter que agir. Claro que esse programa tem que caber no orçamento.

Por quanto tempo um programa desses consegue se sustentar? Ele deve ser mantido pelo tempo necessário. O que não pode continuar é você ter um programa de R$ 800 por pessoa, na média, se você considerar os que recebem R$ 600 e os que recebem R$ 1.200 [do auxílio emergencial]. Isso é impossível, não cabe em nenhum orçamento, e de fato impediria o crescimento. Esse programa tem de prosseguir com instrumentos para que você possa superar-los, não dá para manter [as pessoas dentro dele] eternamente. Pode ser um programa permanente, desde que ele construa condições para que a pessoa que está no programa possa sair com preparação e educação para as novas tecnologias.

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