Novas regras de diversidade do Oscar são vergonhosamente doutrinárias

Há anos a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, responsável pela entrega dos prêmios do Oscar, enfrenta uma grande ameaça: a perda frequente e cada vez maior de sua audiência global. Mesmo que às vésperas de cada edição os organizadores daquela que é considerada a maior premiação do cinema façam promessas de que a cerimônia será mais enxuta, a festa jamais dura menos do que três (cansativas) horas. Em 2020, por exemplo, o cronômetro registrou três horas e 40 minutos. Resultado: uma audiência 20% menor em relação à de 2019. Foram 23,6 milhões de espectadores ou cerca de sete milhões a menos do que o ano anterior. A duração do show não é a única responsável por essas quedas. Existe também a necessidade, muitas vezes forçada, de transformações e atualizações que, infelizmente, causam um desinteresse ainda maior do público. A última delas, anunciada nesta semana, cria regras de representatividade para indicados ao Oscar de melhor filme; no novo regulamento, há tópicos que envolvem elenco, equipe de filmagem e treinamento para estagiários. Entende-se por representatividade questões como etnia, participação de mulheres, grupos LGBTQI+ e até mesmo pessoas com deficiência física. É evidente que nada disso guarda qualquer relação com aquilo que a Academia deveria priorizar na escolha de um filme; no caso, a qualidade da obra. Mas lá se vão mais de 90 anos de Oscar. É muita história para conhecer e compreender como se chegou até aqui.  

Em fevereiro de 2000, estive pela primeira vez em Los Angeles para, como se diz no jargão jornalístico, cobrir o Oscar. Aquela seria a última oportunidade em que as cobiçadas estatuetas douradas seriam entregues no Dorothy Chandler Pavilion, um majestoso auditório cravado no centro de Los Angeles e que por muitos anos serviu de palco para a maior premiação do cinema no mundo. No entanto, como fã incondicional da Sétima Arte, jornalista, crítico de cinema e estudioso da história daquele prêmio, fui conhecer o tradicional Roosevelt Hotel, em Hollywood. Foi ali, exatos dois anos após sua inauguração, que em 16 de maio de 1929 se deu a primeira cerimônia de entrega dos Oscars. Tendo como apresentadores o ator Douglas Fairbanks e o diretor William C. deMille, o evento não ultrapassou os 15 minutos – apenas um minuto para cada uma das quinze categorias premiadas.

Os agraciados não surpreenderam ninguém, já que a lista completa dos vencedores havia sido divulgada três meses antes. Aquela cerimônia, portanto, era somente uma forma de reunir as reluzentes estrelas da Hollywood de então para confraternizar e, sobretudo, cravar na antologia do cinema a formação e os objetivos da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, fundada em 1927 por Louis B. Meyer – o produtor e magnata dos estúdios Metro-Goldwyn-Mayer (MGM). Como uma premiação sem surpresa não tem a menor graça, já no ano seguinte a Academia alterou as regras e os concorrentes chegavam à festa sem saber quem seriam os ganhadores. Ocorre que a imprensa queria, já nos jornais da manhã seguinte, estampar os resultados da premiação. A Academia fez um acordo com os jornalistas e passou a fornecer a lista dos vencedores no dia da premiação, mas com a condição de que nenhuma informação seria vazada antes do tempo. Durante 10 anos tudo deu certo, até que o jornal Los Angeles Times descumpriu o acordo e revelou os resultados antes da cerimônia. Assim, a partir de 1941, a Academia passou a selar os envelopes contendo os nomes dos vencedores, mantendo-os em segredo de todos – principalmente da imprensa. 

Esta talvez tenha sido a primeira e grande polêmica envolvendo os Oscars. Outras foram surgindo na mesma medida em que o evento crescia em proporção e prestígio. Durante várias décadas, a Academia foi acusada por conta do lobby dos grandes estúdios, que sempre gastaram milhões de dólares em publicidade para “comprar” os votos dos acadêmicos. Até o final dos anos 1990, astros e estrelas recebiam dos estúdios certos agrados como joias, roupas, carros e até viagens para caríssimos resorts. Tudo como forma de incentivo para se votar neste ou naquele filme, independentemente da qualidade da obra. Em toda a história da premiação, a Academia parece nunca ter escondido uma predileção por determinados gêneros. Obras épicas sobre guerras, musicais, romances e dramas são os queridinhos da festa. Terror, suspense e comédias sempre foram desprezados. Basta observar que Charlie Chaplin ou Alfred Hitchcock, por exemplo, nunca foram premiados (ganharam, sim, prêmios honorários), e a Academia jamais foi perdoada.

Por conta de sua magnitude crescente, atingindo milhões de pessoas ao redor do mundo nas transmissões televisivas a partir dos anos 1970, a cerimônia do Oscar também se transformou em um poderoso microfone para ecoar os mais diferentes posicionamentos políticos. Houve manifestações sobre a Guerra do Vietnã, a queda do muro de Berlim, o embargo americano a Cuba, aborto, feminismo e, em várias oportunidades, discursos escancarados contra e favor do presidente americano em exercício. Impossível esquecer, por exemplo, do lamentável protesto ancorado por Marlon Brando quando ele foi anunciado vencedor do Oscar pelo papel de Don Vito Corleone em “O Poderoso Chefão”. Brando não compareceu à cerimônia e, em seu lugar, o ator enviou uma índia chamada Sacheen Littlefeather para comunicar que Marlon Brando recusava a estatueta sob o argumento de que exigia mais respeito e proteção aos índios nativos americanos. Meses depois se descobriu que a tal índia, na verdade, era somente uma atriz contratada pelo ator para encenar um discurso politizado.

A grande virada de chave que alterou os rumos da Academia se deu em 2016, com a campanha #OscarsSoWhite (Oscar muito branco), uma vez que na edição daquele ano não havia nenhum negro indicado nas principais categorias. E não havia mesmo pelo simples fato de que nenhum negro (ator ou atriz) apareceu numa produção de destaque e com qualidades suficientes para uma indicação. Mas esse argumento já não valia e não vale mais. Tudo é uma questão de diversidade. Fato é que esse episódio na história da Academia abriu espaço, a seguir, para que o Oscar se transformasse no catalisador de todas as agendas progressistas em defesa das minorias (gays, latinos, asiáticos). Na esteira, surgiu também o movimento #MeToo, encabeçado por atrizes que vieram a público para denunciar o assédio sexual, o que literalmente acabou com a carreira de muita gente, de atores, diretores a produtores. 

A Academia, então, reuniu nos últimos anos todas essas demandas e criou um pacote de drásticas mudanças que culminaram com o recente anúncio das novas regras de representatividade. Em tempo: se por um lado não podemos negar a importância de pautas como preconceito e racismo, tampouco desprezar os relatos de dor e trauma das mulheres assediadas sexualmente, por outro é impossível não questionar o que será do Oscar daqui para frente. Isso porque, como já foi dito, diversidade não possui qualquer relação com a qualidade de um filme. As novas regras da Academia são divididas em três padrões (A, B, C) e cada um deles apresenta pelo menos mais três subtópicos. Fiquemos apenas no Padrão A, certamente o mais desafiador: representatividade de temas e narrativas na tela (1 de 3 critérios necessários). A.1: Pelo menos um dos atores principais ou coadjuvantes de destaque deve pertencer a uma etnia ou grupo racial pouco representado (asiático, latino/hispânico, negro, nativo-americano, norte-africano, nativo havaiano); A.2: Pelo menos 30% de todo o elenco em papéis secundários ou menores devem pertencer a dois grupos pouco representados (mulheres, grupos raciais ou étnicos, LGBTQI+, pessoas com deficiência física ou cognitiva); A.3: A história principal, tema ou narrativa deve ser centrada em um grupo pouco representado.

Quero me corrigir. Isso tudo não é somente desafiador; é absoluta e vergonhosamente doutrinário. Elimina por completo toda a liberdade criativa e sensorial dos autores. Toda e qualquer história estará submetida a regras que fogem ao bom senso e agridem a inteligência. Imagine o diretor Steven Spielberg lendo “Pelo menos um dos atores principais ou coadjuvantes de destaque deve pertencer a uma etnia ou grupo racial pouco representado” e, por conta de uma insensatez como essa, é obrigado a abrir mão de um Tom Hanks. Como Sam Mendes poderia dirigir um filme de guerra deslumbrante como “1917” sendo obrigado a incluir no elenco 30% de pessoas com deficiência física ou cognitiva? Quem vai definir um grupo como sendo pouco representado para que este seja tema da história principal? Será que finalmente teremos alguma produção sobre os Hititas, é isso?

Não é difícil perceber que a Academia está cometendo um grande equívoco e que a consequência disso será, mais uma vez, a perda de uma grande audiência. Uma plateia que busca apenas um bom entretenimento e a grata surpresa de conhecer artistas merecedores de um prêmio, como nos áureos tempos do Roosevelt Hotel. Mas uma plateia que hoje é obrigada, a cada edição, a confrontar-se com um espetáculo politizado. Um palanque para militantes de causas sociais com pouco ou nenhum interesse pela qualidade artística. Em nome da tal diversidade, a Academia infelizmente se rende ao politicamente imbecil e transforma o Oscar numa premiação de consolo. O “consolo” aqui tem duplo sentido e é proposital: antes um prêmio pela qualidade, a estatueta do velho Oscar será um mero objeto de masturbação ideológica.

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