A reforma administrativa precisa ir além; veja o que está em jogo

Em meio a atritos entre o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, a proposta de reforma administrativa chegou ao Congresso, em versões do Executivo e da Câmara dos Deputados. Elas inauguram uma importante discussão no país sobre a superação de um regime de funcionalismo público permeado por desigualdades, anacronismos e gargalos de eficiência. O diagnóstico atual é alarmante: com uma estrutura cara e ineficiente, o Brasil conquistou um dos índices mais baixos do mundo de satisfação com a qualidade do serviço público, segundo a OCDE. Dentre as principais distorções, aponta-se a falta de meritocracia e de análise de desempenho na remuneração de servidores e na progressão das carreiras, benefícios e privilégios sem justa causa, assim como a dificuldade de demissão de servidores ineficientes. Tudo isso tem representado um enorme custo para os governos.

Para endereçar as mudanças no regime do funcionalismo público, o governo federal apresentou ao Congresso uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional), como um primeiro passo para a reforma. O plano do governo é que ela seja sucedida por mudanças legislativas, que acabarão por conformar a extensão da reforma. O primeiro ponto a ser discutido é a necessidade de trilhar o caminho da atualização constitucional para implementar muitas dessas mudanças. Se é verdade que uma PEC pode facilitar a reforma em estados e municípios, que têm competência para legislar sobre o regime de seus servidores, é certo também que muitos dos temas tratados na proposta poderiam ser implementados por meio de lei.  A flexibilização da estabilidade do servidor público, por exemplo, já foi objeto de emenda na Constituição (EC 19/98), que permitiu que servidores com desempenho insatisfatório possam ser demitidos. O problema é que até hoje nenhuma lei (complementar) foi editada para regulamentar essa norma constitucional, criando as métricas, os padrões e os limites para a avaliação de desempenho dos servidores.

Um outro ponto relevante diz respeito a progressões automáticas de carreira. O fim destas progressões e sua vinculação a indicadores de desempenho também são temas que podem ser endereçados por meio de mudança de lei, sendo desnecessária a alteração constitucional. Assim como pode ser também objeto de projetos de lei a redução do número de carreiras, para oferecer maior flexibilidade e eficiência na alocação de servidores – outro gargalo de eficiência da gestão do funcionalismo. Esse é um dos problemas da proposta do governo, que aposta no caminho mais tortuoso para implementar mudanças que poderiam ser endereçadas por meio de edição de leis ordinárias ou complementares, conforme o caso. Caso a alteração da Constituição, que exige um quórum mais exigente do que a alteração legislativa, não prospere, ficará difícil para os governos retomarem essa agenda de reformas pela via legislativa.

É curioso que alguns dos temas que realmente dependeriam de mudança constitucional parecem ter ficado de fora da proposta. É o caso da alteração no regime de magistrados e membros do ministério público. A alegação do governo foi uma possível restrição jurídica para que o Executivo proponha mudança constitucional que afete o regime de servidores de outros poderes. Ocorre que essa limitação não existe no mundo jurídico (não há esta restrição em matéria de emendas constitucionais). Com isso, a PEC do governo trata em boa medida do que não precisaria tratar e deixa de tratar de mudanças que dependeriam da atualização da Constituição.

Já os militares foram deixados de fora da proposta sob a alegação de que obedecem a um regramento distinto dos servidores civis. Mas a reforma administrativa não necessita – e não deve – estar limitada à atualização do regime de servidores civis. Se há aperfeiçoamentos importantes a serem feitos no regime militar – e há vários –, este é o âmbito para faze-lo. Não parece fazer qualquer sentido, por isso, deixar de fora da proposta a modernização do regime de servidores militares. É fato que certos servidores que desempenham competências privativas do Estado podem e devem ter um regime diferenciado, inclusive no tocante à estabilidade, como magistrados, membros do ministério público, auditores, policiais etc. Mas isso já está endereçado em outro ponto da proposta, que trata das carreiras típicas de Estado. Logo, não apenas todas aquelas classes deveriam estar abrangidas pela proposta do novo regime, como apenas os servidores que exerçam competências privativas de Estado deveriam ter regime algo diferenciado. Em todos os casos, benefícios e privilégios sem justa causa devem ser eliminados.

Outro grande problema da proposta do Executivo está em preservar os servidores atuais das novas regras. Isso pode gerar duplicidade de regimes para servidores da mesma classe (o que pode abrir a porta para o risco de judicialização pelos servidores com regime desfavorável) e atrasar a reforma do funcionalismo, que é urgente. Espera-se, enfim, que estas questões sejam discutidas e corrigidas no curso da tramitação da reforma pelo Congresso. O caminho para uma ampla reforma administrativa se abriu. Não o desprezemos.

*Fernando Vernalha é advogado, professor e escritor – foi pesquisador visitante na Columbia University. E escreve sobre infraestrutura, governo e gestão pública.

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