De quem é a responsabilidade pela captação de dados pessoais nas redes sociais?

O texto de Shakespeare intitulado “Much Ado About Nothing” traz, de forma intencional, uma instigante ambiguidade: o último vocábulo se assemelha a sonoridade de “noting” (rumor), e, da história de Benedick e Beatrice, extrai-se que fizeram muito barulho por nada, ou por simples intriga. O que se coloca é se há intriga ou integridade na captação de dados pelas redes sociais, que justificaria um sem número de séries, documentários e teorias da conspiração, e se há dualidade na responsabilidade pelas ações e omissões dos usuários e das plataformas. De um lado, repete-se frases de efeito como “se você não paga por um produto, o produto é você”, e que o termo “usuário” somente seria designado para consumidores de drogas e tecnologia, e que os artifícios manejados pelas plataformas com tom de ineditismo, em verdade usam recursos conhecidos de longa data, similares aos dos caça-níqueis em cassinos, para manter seus usuários conectados.

Quanto à utilização de um serviço sem pagamento, também não há nada de novo, posto que há décadas acompanhamos programas de rádio e televisão aberta sem desembolsar nada, ao menos diretamente. A diferença é que, com as redes sociais, os usuários saem de uma posição passiva, de meros receptores, e passam a fornecer informações por intermédio de suas interações nas publicações, enviando dados sobre sua personalidade e convicções à medida que curtem, reprovam ou reagem a assuntos específicos.

Por outro lado, plataformas como o Facebook não escondem de seus usuários tal proceder: refletem-no em seus termos de uso, indicando clara e expressamente que, ao utilizar seus produtos, o anuente “concorda que podemos mostrar anúncios que consideramos relevantes (…)” e que “usamos seus dados pessoais para ajudar a determinar quais anúncios mostrar”. Mas diante de tais fatos, questionamentos naturalmente afloram como: as longínquas laudas dos termos de uso não seriam um contrassenso à fluidez exacerbada da internet? A limitação imposta pelo Twitter de caracteres para cada postagem contrasta com as 34 páginas e inúmeras referências externas dos seus termos de serviço?

Da mesma maneira, o fato de os desenvolvedores criarem mecanismos para que os usuários passem mais tempo em suas plataformas também não seria motivo de alvoroço, por se tratar de objetivo inerente a sua atividade. A discussão não deveria conduzir à inoportuna e recorrente polarização esquerda-direita, anjos-demônios, usuários-plataformas, mas, sim, considerar os efeitos dessas constatações: a captação de dados e o oferecimento de um ambiente que mantém por mais tempo o usuário são questões feitas às claras, bastando o mínimo cuidado por parte do usuário, na mesma medida em que cabe ao provedor zelar pelos dados coletados? O problema não reside nos bilhões de dólares gastos em pesquisas e aperfeiçoamento de profissionais e algoritmos para entender a mente humana através de suas ações nas redes, e usar as fragilidades expostas por cada um para os influenciar. A agrura está na linha tênue que divide a influência da manipulação.

Influenciar é convencer alguém de que algo é melhor, ao passo que manipular é impor um elemento pela ausência de acesso a toda a verdade. Quando esta ocorre, ganham espaço questionamentos acerca de como a Cambridge Analytica adquiriu dados de usuários sem que esses consentissem, os processou, e de que forma direcionou aos mesmos mensagens que nortearam suas tomadas de decisões, a ponto de manipular eleições presidenciais? Seu psiquiatra saber seus pontos fracos é uma opção sua, mas algo completamente distinto seria se ele os mercantilizasse sem o seu consentimento – ou com consentimento parcial -, para que terceiros manipulassem suas tomadas de decisão.

E, mesmo diante do escancaramento de ações dessa monta, parcela significativa dos usuários “opta” – por questões e dificuldades óbvias – por polemizar do sofá ou, o que é pior, o fazem no seio dos próprios aplicativos, ao invés de usar as ferramentas jurídicas disponíveis para fazer frente aos abusos, cobrando transparência e uma regulamentação com efetiva participação popular. Nem sempre o Direito acompanha as transformações da sociedade, ainda mais as modificações advindas com a era digital de uma sociedade em rede, mas incumbe a ela municiar as fontes do Direito com as necessidades a serem supridas.

Visando prover essa deficiência, a controvérsia poderia ser direcionada para:  (i) debater o acerto das esparsas decisões judiciais que reconhecem o usuário de redes sociais como consumidor, e os consequentes efeitos da eventual aplicação do Código de Defesa do Consumidor; (ii) mesmo que haja anuência dos usuários, eventuais cláusulas abusivas contidas nos termos de uso possuem eficácia plena? (ii) há potencialidade de responsabilização da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público, prevista por exemplo, no Estatuto da Criança e do Adolescente? (iii) há alguma implicação de responsabilidade no ordenamento brasileiro, nos âmbitos penal, cível e administrativo? e (iv) há lacuna a ser suprida na interpretação do art. 4º, inciso I, da LGPD – de que a lei não se aplicaria ao tratamento de dados pessoais “realizado por pessoa natural para fins exclusivamente particulares e não econômicos” – pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados, nos mesmos moldes que a Corte de Justiça Europeia já de deparou com previsão similar constante do Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu?

Diante da enormidade das questões colocadas, não nos parece haver muito barulho por nada, mas sim um alarido sem foco e pauta determinadas, fazendo com que o tom das intrigas cada vez mais ácidas às plataformas e aos seus usuários apenas causem mais divisão do que qualquer sorte de solução. Se todos os atores envolvidos não se conscientizarem dos respectivos papéis, não poderão reclamar se o espetáculo se modificar drasticamente ou for retirado de cartaz.

*Marcelo Escobar é advogado, professor e músico. Escreve às quartas-feiras sobre assuntos jurídicos e seus impactos na vida cotidiana.

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