A extraordinária região ‘cheia de atividade caótica e espumosa’ explorada pela missão Voyager fora do Sistema Solar


Depois que as sondas espaciais Voyager 1 e 2 conseguiram sair do Sistema Solar, muito mais se aprendeu sobre o espaço entre as estrelas no Universo. O Sol produz uma barragem constante de partículas de alta energia conhecidas como vento solar, que podem subir e descer com a atividade de nossa estrela
Nasa via BBC
O misterioso vácuo escuro do espaço interestelar está finalmente sendo revelado pelas duas espaçonaves que se tornaram os primeiros objetos feitos pelo homem a deixar nosso Sistema Solar.
Longe do abraço protetor do Sol, a borda de nosso sistema solar parece ser um lugar frio, vazio e escuro. O espaço aberto entre nós e as estrelas mais próximas foi durante muito tempo considerado uma extensão assustadoramente vasta de nada.
Até recentemente, era um lugar que a humanidade só podia espiar de longe. Os astrônomos prestaram uma atenção apenas passageira, preferindo focar seus telescópios nas massas brilhantes de estrelas, galáxias e nebulosas vizinhas.
Mas duas espaçonaves construídas e lançadas na década de 1970 têm nos últimos anos enviado de volta nossos primeiros vislumbres desta estranha região que chamamos de espaço interestelar.
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Como os primeiros objetos feitos pelo homem a deixar nosso Sistema Solar, elas estão se aventurando em um território desconhecido, a bilhões de quilômetros de casa. Nenhuma outra espaçonave viajou tão longe.
E elas revelaram que, além dos limites de nosso Sistema Solar, existe uma região invisível de atividade caótica e espumante.
A nave espacial Voyager, do tamanho de um carro, foi lançada em 1977 e agora está transmitindo dados do espaço interestelar
Nasa via BBC
“Quando você olha para diferentes partes do espectro eletromagnético, essa área do espaço é muito diferente da escuridão que percebemos com nossos olhos”, diz Michele Bannister, astrônoma da Universidade de Canterbury em Christchurch, Nova Zelândia, que estuda os limites externos do Sistema Solar.
“Os campos magnéticos estão lutando, empurrando e amarrados uns aos outros. A imagem que você deve ter em mente é como a de uma piscina embaixo das Cataratas do Niágara.”
Em vez da queda de água, no entanto, a turbulência é resultado do vento solar (um fluxo constante e poderoso de partículas carregadas, ou plasma, espalhando-se em todas as direções a partir do Sol), conforme se choca em um coquetel de gás, poeira e raios cósmicos que sopram entre sistemas estelares, conhecido como “meio interestelar”.
Cientistas estão construindo uma imagem da composição do meio interestelar, em grande parte graças a observações com telescópios de rádio e raios-X.
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Eles revelaram que é composto de átomos de hidrogênio ionizados extremamente difusos, poeira e raios cósmicos intercalados com densas nuvens moleculares de gás que se acredita serem o local de nascimento de novas estrelas.
Mas a exata natureza fora de nosso sistema solar tem sido um grande mistério, principalmente porque o Sol, os oito planetas e um distante disco de detritos conhecido como Cinturão de Kuiper estão todos contidos dentro de uma bolha protetora gigante formada pelo vento solar, conhecido como heliosfera.
À medida que o Sol e seus planetas circundantes se lançam pela galáxia, esta bolha se espalha contra o meio interestelar como um escudo invisível, mantendo longe a maioria dos raios cósmicos nocivos e outros materiais.
Mas suas propriedades também tornam mais difícil estudar o que está além da bolha. Mesmo determinar seu tamanho e forma é difícil a partir do lado de dentro.
“É como se você estivesse dentro de sua casa e quisesse saber como é. Você tem que ir lá fora e dar uma olhada para realmente dizer”, afirma Elena Provornikova, pesquisadora de pós-doutorado no Laboratório de Física Aplicada da Universidade Johns Hopkins.
“A única maneira de ter uma ideia é viajar para longe do Sol, olhar para trás e tirar uma imagem de fora da heliosfera.”
Esta não é uma tarefa simples. Em comparação com toda a Via Láctea, nosso Sistema Solar parece menor do que um grão de arroz flutuando no meio do Pacífico.
E, no entanto, a borda externa da heliosfera ainda está tão distante que levou mais de 40 anos para as espaçonaves Voyager 1 e Voyager 2 chegarem lá depois de partir da Terra.
Voyager 1
Nasa
A Voyager 1, que tomou uma rota mais direta através do Sistema Solar, passou para o espaço interestelar em 2012, antes da Voyager 2 se juntar a ela em 2018.
Atualmente a cerca de 13 bilhões e 11 bilhões de milhas da Terra, respectivamente, elas estão agora se afastando cada vez mais para o espaço além do nosso Sistema Solar, enviando de volta mais dados.
O que essas duas sondas antigas revelaram sobre a fronteira entre a heliosfera e o meio interestelar forneceu novas pistas sobre como nosso Sistema Solar se formou e como a vida na Terra é possível.
Longe de ser uma fronteira nítida, a borda do nosso Sistema Solar realmente se agita com campos magnéticos turbulentos, tempestades de vento estelares conflitantes, tempestades de partículas de alta energia e radiação em redemoinho.
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O tamanho e a forma da bolha da heliosfera se alteram conforme a saída do Sol muda e conforme passamos por diferentes regiões do meio interestelar. Quando o vento solar sobe ou desce, ele muda a pressão externa na bolha.
Em 2014, a atividade do Sol aumentou, enviando o que equivalia a um furacão de vento solar varrendo o espaço.
A explosão atingiu Mercúrio e Vênus rapidamente a cerca de 800 km por segundo. Após dois dias e 150 milhões de km, envolveu a Terra. Felizmente, o campo magnético do nosso planeta nos protegeu de sua radiação poderosa e prejudicial.
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Nasa/NOAA
A rajada passou por Marte um dia depois e continuou através do cinturão de asteroides em direção aos gigantes gasosos distantes — Júpiter, Saturno, Urano e depois de mais de dois meses, Netuno, que orbita cerca de 4,5 bilhões de km do sol.
Depois de mais de seis meses, o vento finalmente atingiu um ponto a mais de 13 bilhões de km do Sol, conhecido como “choque de terminação”.
Aqui, o campo magnético do Sol, que impulsiona o vento solar, torna-se fraco o suficiente para que o meio interestelar o empurre.
A rajada de vento solar emergiu do choque de terminação viajando a menos da metade de sua velocidade anterior — é o furacão rebaixado para uma tempestade tropical.
Então, no final de 2015, ele ultrapassou a forma irregular da Voyager 2, que tem o tamanho de um carro pequeno. A onda de plasma foi detectada pelas tecnologias de detecção da Voyager, alimentadas por uma bateria de plutônio de decomposição lenta.
A sonda enviou dados de volta para a Terra, que mesmo na velocidade da luz levou 18 horas para chegar até nós.
Os astrônomos só podiam receber as informações da Voyager graças a uma enorme matriz de antenas parabólicas de 70 metros e tecnologia avançada que não tinha sido imaginada, muito menos inventada, quando a sonda deixou a Terra, em 1977.
A onda de vento solar atingiu a Voyager 2 enquanto ela ainda estava dentro de nosso Sistema Solar. Pouco mais de um ano depois, os últimos suspiros do vento alcançaram a Voyager 1, que havia cruzado para o espaço interestelar em 2012.
As diferentes rotas percorridas pelas duas sondas significavam que uma estava cerca de 30 graus acima do plano solar, e a outra, a mesma quantidade abaixo. A explosão do vento solar os atingiu em diferentes regiões em momentos diferentes, o que forneceu pistas úteis sobre a natureza da heliopausa.
Os dados revelaram que a fronteira turbulenta tem milhões de quilômetros de espessura. Ela cobre bilhões de quilômetros quadrados ao redor da superfície da heliosfera.
A heliosfera também é inesperadamente grande, o que sugere que o meio interestelar nesta parte da galáxia é menos denso do que as pessoas pensavam.
O Sol corta um caminho através do espaço interestelar como um barco se movendo na água, criando uma “onda de proa” e estendendo uma esteira atrás dela, possivelmente com uma cauda (ou caudas) em formas semelhantes às dos cometas.
Ambas as Voyagers saíram pelo “nariz” da heliosfera e, portanto, não forneceram informações sobre a cauda.
“A estimativa com base nas Voyagers é que a heliopausa tem cerca de uma unidade astronômica de espessura (93 milhões de milhas, que é a distância média entre a Terra e o Sol)”, diz Provornikova.
“Não é realmente uma superfície. É uma região com processos complexos. E não sabemos o que está acontecendo lá.”
Não apenas os ventos solares e interestelares criam um cabo de guerra turbulento na fronteira, mas as partículas parecem trocar de carga e impulso. Como resultado, uma parte do meio interestelar torna-se convertida em vento solar, aumentando o impulso para fora da bolha.
E embora uma onda de vento solar possa fornecer dados interessantes, parece ter um efeito surpreendentemente pequeno no tamanho e forma geral da bolha.
Parece que o que acontece fora da heliosfera é muito mais importante do que o que acontece dentro. O vento solar pode aumentar ou diminuir com o tempo, sem parecer afetar drasticamente a bolha. Mas se essa bolha se mover para uma região da galáxia com vento interestelar mais denso ou menos denso, ela encolherá ou aumentará.
No entanto, muitas perguntas permanecem sem resposta, incluindo aquelas sobre o quão típica pode ser nossa bolha protetora do vento solar.
Provornikova diz que entender mais sobre nossa própria heliosfera pode nos ajudar a responder sobre se estamos sozinhos no universo.
“O que estudamos em nosso próprio sistema vai nos dizer sobre as condições para o desenvolvimento da vida em outros sistemas estelares”, diz ela.
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Isso ocorre principalmente porque, ao manter o meio interestelar sob controle, o vento solar também impede um bombardeio de radiação e partículas mortais de alta energia (como os raios cósmicos) do espaço profundo.
Os raios cósmicos são prótons e núcleos atômicos fluindo pelo espaço quase à velocidade da luz. Eles podem ser gerados quando as estrelas explodem, quando as galáxias colapsam em buracos negros e outros eventos cósmicos cataclísmicos.
A região fora de nosso Sistema Solar é densa com uma chuva constante dessas partículas subatômicas de alta velocidade, que seriam poderosas o suficiente para causar envenenamento por radiação mortal em um planeta menos protegido.
“A Voyager definitivamente disse que 90% dessa radiação é filtrada pelo Sol”, diz Jamie Rankin, pesquisador de heliofísica da Universidade de Princeton e a primeira pessoa a escrever uma tese de doutorado com base nos dados interestelares das Voyagers.
“Se não tivéssemos o vento solar nos protegendo, não sei se estaríamos vivos.”
Três sondas adicionais da Nasa logo se juntarão às Voyagers no espaço interestelar, embora duas já tenham ficado sem energia e parado de retornar dados. Essas pequenas alfinetadas na fronteira gigante fornecerão apenas informações limitadas por conta própria. Felizmente, uma observação mais abrangente pode ser feita mais perto de casa.
O International Boundary Explorer da Nasa (Ibex), um minúsculo satélite que orbita a Terra desde 2008, detecta partículas chamadas de “átomos energéticos neutros” que passam pela fronteira interestelar. O Ibex cria mapas tridimensionais das interações que acontecem ao redor da borda da heliosfera.
“Você pode pensar nos mapas do Ibex como uma espécie de ‘radar Doppler ‘e as Voyagers como estações meteorológicas no solo”, diz Rankin.
Ela usou dados das Voyagers, Ibex e outras fontes para analisar surtos menores do vento solar e atualmente está trabalhando em um artigo baseado na explosão muito maior que começou em 2014. Até agora, as evidências mostram que a heliosfera estava encolhendo quando a Voyager 1 ultrapassou a fronteira, mas estava se expandindo novamente quando a Voyager 2 a cruzou.
“É um limite bastante dinâmico”, diz ela.
“É incrível que essa descoberta tenha sido capturada nos mapas 3D da Ibex, o que nos permitiu rastrear as respostas locais das Voyagers ao mesmo tempo.”
O Ibex revelou o quão dinâmico o limite pode ser.
Em seu primeiro ano, detectou uma fita gigante de átomos energéticos serpenteando pela fronteira que mudou ao longo do tempo, com características aparecendo e desaparecendo tão rapidamente quanto seis meses. A fita é uma região no nariz da heliosfera onde as partículas do vento solar ricocheteiam no campo magnético galáctico e são refletidas de volta para o Sistema Solar.
Mas há uma surpresa na história das Voyager. Embora tenham deixado a heliosfera, elas ainda estão dentro do alcance de muitas das outras influências do nosso Sol.
A luz do Sol, por exemplo, seria visível a olho nu a partir de outras estrelas.
A gravidade de nossa estrela também se estende bem além da heliosfera, mantendo no lugar uma esfera esparsa e distante de gelo, poeira e detritos espaciais conhecida como Nuvem de Oort.
Os objetos de Oort ainda orbitam o Sol, apesar de flutuarem muito no espaço interestelar.
Embora alguns cometas tenham órbitas que vão até a nuvem de Oort, uma região de 300 a 1.500 bilhões de km é geralmente considerada muito distante para que possamos enviar nossas próprias sondas.
Esses objetos distantes quase não mudaram desde o início do Sistema Solar e podem conter as chaves para tudo, desde como os planetas se formam até a probabilidade de vida em nosso universo. E com cada onda de novos dados, novos mistérios e questões também surgem.
Provornikova diz que pode haver uma capa de hidrogênio cobrindo parte ou toda a heliosfera, cujos efeitos ainda não foram decodificados.
Além disso, a heliosfera parece estar se transformando em uma nuvem interestelar de partículas e poeira remanescente de antigos eventos cósmicos cujos efeitos sobre a fronteira (e sobre aqueles de nós que vivem dentro dela) não foram previstos.
“Isso pode mudar as dimensões da heliosfera, pode mudar sua forma”, explica Provornikova. “Pode ter diferentes temperaturas, diferentes campos magnéticos, diferentes ionizações e todos esses diferentes parâmetros. É muito emocionante porque é uma área de muitas descobertas, e sabemos muito pouco sobre essa interação entre a nossa estrela e a galáxia local.”
Aconteça o que acontecer, duas variedades de metal do tamanho de um carro parafusadas em pequenos pratos parabólicos — as intrépidas sondas Voyager — serão a vanguarda do nosso Sistema Solar, revelando cada vez mais sobre este território estranho e desconhecido à medida que avançamos através do espaço.

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