O homem da motosserra ficou conhecido nos corredores da Câmara dos Deputados pela fala mansa, olhar perigosamente tranquilo como um poço sem fim, andar esquálido e fama de mau. Era a excelência com mãos sujas de sangue e acusado de serrar um adversário com uma motosserra. O rapaz estava vivo quando foi esquartejado. O deputado era, na época, acima da lei, tinha imunidade parlamentar que não existe mais. Era preciso dar autorização para o Supremo abrir inquérito contra o assassino reconhecidamente frio e reincidente. Os deputados, mesmo nesta condição, mantiveram o famoso espírito de corpo. Preferiram cassar o mandato do colega a abrir o precedente e dar autorização para inquérito ou processo. A imunidade parlamentar começou a ser revista ali e caiu de podre. Hoje, a Polícia Civil do Rio de Janeiro não precisou nem de autorização para investigar a deputada Flordelis e seus 50 filhos. O Supremo, e não o Congresso, decidiu que foro especial só vale para a duração do mandato e investigações relativas à função parlamentar. Não há entre as funções dos deputados e senadores nada que indique organizar grupo criminoso ou arquitetar a morte do próprio marido de uma família de faz de contas.
Hildebrando Paschoal é um ex-coronel da Polícia Militar, diplomado pelo Acre e com fama de mau. Foi eleito deputado federal para se esconder de crimes praticados. Já chegou com a ficha repleta. Em 1998 existia a imunidade parlamentar. Antes total, depois exigia a autorização do Congresso para início do processo, mas a autorização nunca era votada e depois a inversão, com a possibilidade do Congresso suspender um processo no Supremo e, por último, a imunidade apenas para voto e fala. Depois, o Supremo praticamente acabou com o foro especial e rediscute até a imunidade no discurso. A imunidade foi criada para proteger o povo, o deputado teria a imunidade para usar em favor da sociedade. Os parlamentares roubaram este instrumento e usaram para os próprios crimes e, se não houvesse mudança, os plenários da Câmara e Senado estariam repletos de criminosos comuns. Isto é contra a ética da malandragem que impera por aqui. Os crimes aceitos são os de roubo de classe. O ex-deputado foi condenado em júri popular, teve a patente de coronel cassada e está sentenciado a mais de 100 anos.
O ex-deputado Talvane Albuquerque era suplente. Estava decidido a chegar ao plenário da Câmara e fez o desvio. Mandou matar a deputada Ceci Cunha, do PSDB de Alagoas. Tomou posse com festa e presença de toda família no plenário. Em seguida, o crime bárbaro que acabou vitimando o marido e mais dois integrantes da família foi revelado. O médico, com aparência pacata, contratou para a “chacina da gruta” os assassinos Jadielson e José Alexandre como escada para chegar ao poder. Foi cassado e condenado a 103 anos de prisão. O crime foi em 1999, ele foi preso em 2012 e até hoje o caso ainda não está encerrado. O STJ negou, no ano passado, um pedido para anular o julgamento.
Deputada Flordelis, do PSD do Rio de Janeiro, foi a mandante da morte do marido, o pastor Anderson do Carmo. O religioso foi executado pelos filhos do casal em casa com pelo menos seis tiros. E o grave é que houve outras tentativas de assassinato através de veneno colocado na comida dele, mas o desfecho foi mesmo tiros num teatro que tentava passar por “roubo frustrado”, como falou logo depois do assassinato a deputada – chorona como uma viúva desconsolada. A família diferente, com 55 pessoas, era apresentada como perfeita e íntegra. A religiosidade e espírito altruísta nada mais eram do que lema para campanha com o objetivo claro de poder na igreja e na política. Destes, 11 foram indiciados como mandantes e executores da morte do pastor. O risonho marido sempre acompanhava a esposa parlamentar aqui em Brasília. O delegado Antônio Nunes, acostumado na profissão a desvendar o mal da vida considera este um “crime bárbaro, crime covarde”. Pelo Congresso, ainda não há manifestação de repulsa. Mais um pedido de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro foi apresentado pelo líder do PSD, deputado Alessandro Molon, colega da deputada. Nada de pedido de cassação da Flordelis. Uma questão de tempo. O indiciamento dela é muito forte e a neta da deputada, Rayane dos Santos, foi presa no confortável apartamento funcional gozando das benesses do mandato parlamentar.
A Lava Jato chegou a investigar 60 deputados e senadores. Hoje alguns ex-parlamentares. Ainda há investigação de detentores de mandato, mas o Conselho de Ética da Câmara não tem nenhum processo em andamento. Os casos em avaliação mostram briguinhas parlamentares e queixas de partidos políticos contra os seus próprios parlamentares. A realidade demora a entrar nos salões verde e azul, onde passam as excelências carregando os seus pecados.
*José Maria Trindade é repórter e comentarista de política da Jovem Pan.
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