É bastante curioso, mas também muito significativo, estrear esta coluna na Jovem Pan para falar sobre cinema em tempos de pandemia. Aliás, uma correção imediata: não é cinema, mas filmes; ou ainda, produção audiovisual. Porque o cinema, como o conhecíamos, não será mais o mesmo quando as portas das salas de exibição se abrirem novamente. É bem verdade que esse assunto já vinha sendo discutido amiúde, mas timidamente. Desde que canais de streaming começaram a surgir, demonstrando a cada dia um maior interesse do público, aqui e acolá surgiram vozes para analisar esse possível novo fenômeno capaz de alterar a trajetória do mercado de exibição. Os mais conservadores logo chiaram. Tradicionais festivais internacionais de cinema, como os de Cannes ou de Berlim, trataram de estabelecer duas condições: a primeira é que cinema (ou filme para cinema) é aquilo obrigatoriamente exibido dentro de uma sala de cinema; produções criadas para os canais de streaming não são cinema. Bobagem!
A história sempre se repete: um dia, a chegada da televisão supostamente ameaçou a existência do rádio; o videocassete comprometeria a audiência das salas de cinema; a internet acabaria com os jornais impressos, com os livros, com tudo. Não é exatamente assim, mas as transformações realmente ocorrem e são necessárias adaptações. Basta se lembrar de que, há bem pouco tempo, a discussão da vez era o fato de o cinema digital ser inferior à película. Atualmente, quase ninguém mais no mundo usa película – até porque, algumas das empresas ou não existem mais ou já nem fabricam o produto – e pouco provavelmente alguém conseguiria apontar se um filme foi feito em película ou processo digital.
Vários anos atrás, um importante festival de cinema no Brasil preservava na premiação uma categoria específica para filmes produzidos somente em 16mm – um formato de película já naquele momento ultrapassado e com resolução mais baixa do que o de 35mm, que era o padrão para todos os cineastas. Era muito comum, até um clichê, os realizadores afirmarem que “tudo era cinema, independentemente da bitola cinematográfica”. Trata-se de um conceito que pode e deve ser adaptado aos dias atuais quando se discute a forma como assistimos a uma produção audiovisual. Por causa da pandemia do novo coronavírus, estamos todos em isolamento social. A recomendação do “fique em casa”, em caráter global, de imediato fez com que justamente empresas como Netflix, HBO Go, Apple TV, Amazon Prime, Globoplay e outras registrassem um crescimento de mais de 20% em assinaturas. E mais: em termos de horas assistidas, o salto foi de aproximadamente 80%. Nunca antes tanta gente e por tanto tempo consumiu aquilo que se convencionou a chamar de cinema, mas fora da sala de cinema.
Vale aqui uma digressão: os irmãos Louis e Auguste Lumière inventaram o cinematógrafo em 1895. A primeira exibição de cinema do mundo foi realizada no dia 28 de dezembro daquele ano, numa sessão em um restaurante-café, em Paris. Há registros fotográficos daquele momento. Uma rápida olhada nestas fotografias e perceberemos que o tal “cinema” dos irmãos Lumière naquele instante não passava de um minúsculo pedaço de pano branco na parede. Ou seja, para o espectador desse mundo moderno, que experimenta aquela que pode ser uma das maiores transformações do século, não importa o tamanho da tela. Pode ser o tablet, a tela do computador ou do celular e a televisão dentro da sala de casa. Esta, aliás, com proporções bem maiores do que o cinema dos Lumière. Tudo é cinema, tudo é filme!
*Marcos Petrucelli é jornalista, escritor e crítico de cinema. Escreve sobre filmes, séries de TV, cultura pop e política do audiovisual.
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