Na próxima terça-feira (28/6), o Ministério da Saúde fará audiência pública para discutir o conteúdo das diretrizes técnicas para prevenção, avaliação e conduta de casos de aborto publicadas pela pasta no começo de junho.
A principal crítica ao documento, feito para guiar os profissionais de saúde do SUS no atendimento às mulheres, é que ele dificulta o acesso das vítimas de violência sexual ao aborto permitido por lei.
Depois de reclamações, o Ministério da Saúde decidiu fazer a audiência em formato híbrido. A lista de convidados para participar do debate ainda não está definida.
Em entrevista ao Metrópoles, o secretário de atenção primária à Saúde do Ministério da Saúde, Raphael Câmara, explica que a atualização do guia foi feita para adequar o documento às novas evidências científicas e à legislação — a última revisão de orientações tinha sido feita em 2011.
Câmara afirma que o documento é técnico e alega que quem está fazendo alarde é a mídia. “Não é comum que a população leia documentos técnicos, mas os profissionais têm que ser alertados sobre a lei vigente. Nas diretrizes anteriores, fazia-se praticamente uma descriminalização do aborto, que ia frontalmente contra a legislação”, frisa.
Após a polêmica, o secretário admite a possibilidade de editar o documento, principalmente o trecho que sugere que a interrupção da gravidez deve ser precedida de uma investigação policial.
Conhecido por suas opiniões antiaborto, o médico defende que, a depender da idade gestacional, o procedimento ideal seria um parto, a fim de que a criança fosse encaminhada para a adoção. Segundo Câmara, levar a gravidez indesejada a termo não faria diferença para a mulher vítima de violência. O secretário afirma ainda que o aborto ilegal não deve ser considerado um problema de saúde pública.
Confira a entrevista:
- A legislação não fala em prazo para a realização do procedimento nos casos autorizados pela Justiça. Porém, as diretrizes do Ministério da Saúde estipulam o teto de 22 semanas de gestação. Os profissionais de saúde devem seguir qual recomendação?
Ao meu ver, (os profissionais de saúde) são obrigados a seguir o guia do ministério. É importante colocar que a nova diretriz nessa parte é absolutamente igual às duas diretrizes anteriores que foram, inclusive, feitas pelo governo PT, de 2005 e 2015. Do jeito que a mídia está falando, parece que foi uma recomendação nova. Estava como está hoje, 20 a 22 semanas, ou 500 gramas. Não mudamos absolutamente nada.
A lei diz para fazer a interrupção da gravidez. Passou de 20, 22 semanas, do ponto de vista jurídico, o aborto é qualquer morte dentro da barriga, mesmo que seja com 9 meses. Do ponto de vista médico, quem define é o Conselho Federal de Medicinal, do qual sou conselheiro federal pelo Rio de Janeiro. O CFM vai se reunir para definir essa conduta, porque parece que o negócio não está claro.
Já mataram bebê de 5 meses, 6 meses, agora mataram um de 7 meses, daqui a pouco vão matar de 8, 9, sei lá, vão matar bebê até fora da barriga. Cabe ao médico seguir a lei, fazer a interrupção da gravidez quando a mulher que realmente é estuprada solicitar. Mas o que nos causa espécie, que não concordamos, é ter de matar o bebê antes. Não há vantagem médica em provocar a morte do bebê. Por que fazer isso? Não tem sentido.
- O senhor não considera que é uma questão pela saúde mental da vítima, que vai ter de carregar o bebê de um estuprador?
Não. Ninguém está falando para carregar o bebê do estuprador. Se a mulher solicitar a interrupção, ela pode ser feita a qualquer momento. Se ela quiser com 7 meses, 8 meses, ela faz. Estou falando em não matar o bebê. Uma gravidez, por exemplo, de forma genérica, de 7 meses. Há duas opções: matar o bebê na barriga e provocar a interrupção da gravidez por cesariana ou parto vaginal, ou não matar o bebê e fazer a cesariana ou parto vaginal. Para a mulher, vai dar no mesmo, o bebê vai sair da barriga dela. Para o bebê, faz toda a diferença. Em um cenário, ele é assassinado, e em outro, vai sobreviver e pode ser tranquilamente entregue para adoção.
- O Ministério da Saúde considera o aborto uma questão de saúde pública?
Não. Depende do que você chama de saúde pública. Se você colocar qualquer agravo como questão de saúde pública, ok. Se levar para o lado mais latu sensu, a questão de saúde pública ou provoca muitas mortes ou tem muita morbidade ou provoca diversos outros problemas. Mortes por aborto ilegal não se enquadram na definição de um problema de saúde pública.
Alguns exemplos de problema de saúde pública são dengue, Covid-19, doenças cardiovasculares. Algo que provoca em torno de 20 a 30 mortes por ano no país (nota da redação: é difícil quantificar as mortes por aborto ilegal, mas o SUS registrou pelo menos 203 óbitos em 2016) não pode ser caracterizado como problema de saúde pública, levando em conta que, se o aborto fosse liberado, provocaria milhares, dezenas ou centenas de milhares de mortes de embriões e fetos — ao meu ver, isso sim é um problema de saúde pública. Essa é uma discussão técnica, que deve ser vista do ponto de vista técnico.
- Tratar o aborto aprovado por lei como “crime, mas com excludente de ilicitude”, não acaba piorando ainda mais a situação da vítima já fragilizada e dificultando o acesso a algo que é direito assegurado pela Constituição?
Existe homicídio legal? Por que a mídia não chama o homicídio em legítima defesa de homicídio legal? É a mesma situação. A pessoa cometeu um crime, vai ser investigada, julgada, e se o juiz entender que foi legítima defesa, no final ela não vai ser punida. É um excludente de ilicitude, a pessoa comete um crime, mas aquele crime não será punido.
Na audiência pública a gente vai ter o momento para discutir isso com profundidade. Vão ser levados juristas dos dois lados. Se acharmos que depois precisa trocar qualquer coisa na redação, pode ter certeza de que vamos mudar. Não temos compromisso com erro.
- Do jeito que está escrito, não se leva em conta que a vítima pode se sentir ainda mais coagida a não procurar o serviço que está assegurado a ela por lei?
Não concordo. Independentemente disso, o que importa é a lei.
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