Conviver com o abusador durante toda a vida fez com que a psicóloga Paula* demorasse 17 anos para admitir a gravidade da situação que enfrentou na infância. “Amava brincar com a minha prima quando pequena, temos só dois anos de diferença. Aos nove anos, passei uma noite na casa dela, brincamos muito e, quando fomos dormir, seu pai deitou com a gente. Ela me pediu para não ficar ao lado dele na cama. Mesmo acuada, eu concordei e me ajeitei entre os dois. No meio da madrugada, percebi que ele estava passando a mão por cima do meu corpo, como se estivesse me abraçando. Fechei os olhos porque fiquei com medo. Quando ele supôs que eu tinha dormido, colocou as mãos por dentro das minhas roupas e começou a me acariciar. Lembro de me sentir muito incomodada, de me mexer como se estivesse acordando para ver se ele parava, mas ele não parou. Depois, fiquei ali congelada.”
Paula* afirma que, na época, não contou sobre aquela noite para os seus pais porque ficou com medo de que não acreditassem, já que o abusador faz parte da família. “Me senti culpada e invadida, me forcei a esquecer o que vivi, tive um bloqueio emocional, foi como um apagão. Fui uma criança e adolescente problemática, toquei meus dias. Convivi com ele em todas as festas de família, como se nada tivesse acontecido, e a memória apenas voltou quando, trabalhando como psicóloga aos 26 anos, atendi uma menina que foi abusada. As lembranças apareceram e desencadearam uma crise de pânico. Hoje penso na filha dele e no porquê dela não querer dormir ao lado dele na cama. Não aconteceu só comigo”, relata.
Atualmente, estudos apontam que a maioria dos casos de violência sexual ocorrem dentro do núcleo familiar. Segundo o último levantamento do Disque 100 divulgado neste ano pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o Brasil registrou 17 mil denúncias de abuso sexual infantil em 2019. Entre as ocorrências, 73% dos casos se deram na casa da própria vítima ou do suspeito, indicando a proximidade na relação entre eles. Ainda segundo a pesquisa, 40% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes foram cometidos pelo pai ou padrasto.
Recentemente, a jovem psicóloga revelou a violência que sofreu aos seus pais. “Durante a noite do abuso, não consegui dormir. Na manhã seguinte, quando meus pais foram me buscar, levei uma mordida de um dos cachorros que morava na casa. Não doeu muito, mas foi uma bela desculpa para eu chegar em casa chorando. Há pouquíssimo tempo, contei o que aconteceu aos meus pais e eles se recordaram perfeitamente do dia, afirmaram saber que havia algo a mais, que o choro não estava relacionado só à mordida de cachorro, porque eu realmente estava muito mal.” O episódio impactou a infância e adolescência de Paula. No entanto, atualmente, a psicóloga aprendeu a lidar com as memórias do que viveu. “Sempre que posso, falo sobre violência sexual para alertar outras pessoas. Me tratei com médicos e hoje, quando encontro o abusador em comemorações da família, não o cumprimento, finjo que ele não existe”, diz.
Saiba como denunciar abuso sexual infantil
Existem alguns meios para denunciar os casos de violência sexual infantil. São eles:
- Delegacias convencionais e Delegacias de Proteção à Criança e Adolescente (DPCA)
- Ministério Público
- Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS)
- Conselho Tutelar
- Disque 100
- Aplicativo Proteja Brasil
- Ouvidoria Online
- ONG’s como ChildFund Brasil e ChildHood Brasil
- Organização Social Safernet
*O nome foi trocado na reportagem a pedido da vítima.
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