Coronavírus: A longa lista de possíveis sequelas da Covid-19


Além dos pulmões, considerado ‘marco zero’ para o vírus, coração, rins, intestino, sistema vascular e até o cérebro podem ser afetados. Para especialistas, país deve começar a discutir a reabilitação dos recuperados. Profissional de saúde trata pacientes em ala de maternidade de hospital destinado a pessoas com Covid-19 em Moscou, na Rússia, no dia 25 de maio.
Maxim Shemetov/Reuters
Sete meses depois do surgimento da Covid-19, mais de 18 milhões já foram infectados pelo novo coronavírus no mundo e cerca de 11 milhões de pacientes são considerados recuperados.
De um lado, a comunidade científica ainda busca uma vacina contra o Sars-CoV-2. De outro, médicos tentam entender quais consequências de médio e longo prazo o vírus pode trazer para aqueles que já entraram em contato com ele.
Uma série de estudos divulgados nos últimos meses e a observação clínica dos profissionais que estão na linha de frente indicam as possíveis sequelas que a doença pode deixar — ainda que não seja possível dizer se elas são temporárias ou perenes.
Já se sabe, por exemplo, que alguns sintomas podem persistir não apenas entre aqueles que tiveram casos mais graves da doença e que, além de danos nos pulmões, o Sars-CoV-2 pode afetar o coração, os rins, o intestino, o sistema vascular e até o cérebro.
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Respiração comprometida após a alta
O pneumologista Gustavo Prado, do hospital Alemão Oswaldo Cruz, conta que tem recebido um volume expressivo de pacientes que tiveram quadros moderados de Covid-19 e relatam, por exemplo, cansaço e falta de ar.
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Um dos primeiros estudos sobre a função pulmonar de pacientes que haviam acabado de receber alta na China indicava, em abril, que a redução da capacidade pulmonar era uma das principais consequências observadas mesmo entre aqueles que não chegaram a ficar em estado crítico.
Publicado em abril no European Respiratory Journal, o trabalho ressaltava a ocorrência de fenômenos semelhantes em epidemias causadas por outros coronavírus, os da Sars e da Mers, em que as sequelas se estenderam por meses ou anos em alguns casos.
Mais recentemente, um estudo publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA) verificou que, entre 143 pacientes avaliados na Itália, apenas 12,6% haviam sido internados em uma UTI, mas 87,4% relatavam persistência de pelo menos um sintoma, entre eles fadiga e falta de ar, mais de dois meses depois de terem alta.
“A gente tem visto mesmo uma latência para a recuperação plena dos pacientes que tiveram quadros moderados”, afirma o pneumologista do Fleury João Salge.
Muitos desses pacientes, ele conta, retornam às atividades do dia a dia, mas relatam cansaço e veem sua produtividade e qualidade de vida afetados.
A eles, o médico tem recomendado que façam exercícios físicos, respeitando as limitações do momento, e que tentem pouco a pouco desafiar o organismo para recuperar o condicionamento.
Mas ainda não se sabe por quanto tempo esses sintomas podem se estender.
Fibrose pulmonar
Nos casos mais graves, é possível que haja sequelas permanentes, como a fibrose pulmonar, uma doença crônica caracterizada pela formação de cicatrizes no tecido pulmonar.
“A cicatriz preenche o espaço, mas não tem a mesma elasticidade, as mesmas características do tecido original”, explica Prado.
Assim, o pulmão expande menos, ou com maior dificuldade, com uma consequente perda de eficiência nas trocas gasosas. Com a redução da capacidade respiratória vem a falta de ar e o cansaço frequentes.
A fibrose pode ser causada pela inflamação intensa e generalizada que o organismo provoca para tentar expulsar o vírus do corpo. Nesse caso, ela é consequência do processo de reparação natural do tecido danificado.
Mas também pode ser resultado do próprio tratamento, quando o paciente é intubado, por exemplo.
“Apesar de necessária na síndrome respiratória grave, a ventilação não adequada pode impor estresse sobre tecidos pulmonares — por uma distensão exagerada, pela manutenção de pressões altas no enchimento do pulmões ou pela oferta de oxigênio exagerada”, exemplifica Prado.
É a chamada lesão pulmonar induzida pela ventilação, ou VILI (acrônimo da expressão em inglês “ventilator-induced lung injury”), que pode evoluir para uma fibrose.
Síndrome pós-UTI
Longe de ser exclusividade da Covid-19, esse tipo de lesão caracteriza diversas síndromes respiratórias mais graves.
A particularidade, nesse caso, é o fato de que o intervalo de internação dos pacientes infectados pelo novo coronavírus costuma ser maior, o que aumenta a probabilidade de ocorrência desse tipo de sequela.
“Eles ficam muito tempo intubados, traqueostomizados, em ECMO (sigla para “extracorporeal membrane oxygenation”, ou oxigenação por membrana extracorporal, que consiste no uso de uma máquina que realiza a função do coração e pulmões e bombeia o sangue)”, diz a pneumologista e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo.
O período prolongado no hospital também eleva as chances de outro problema que acomete aqueles afetados por infecções graves: a síndrome pós-UTI.
Os sintomas vão desde perda de força muscular, alterações da sensibilidade e da força motora por disfunção dos nervos até depressão, ansiedade, alterações cognitivas, prejuízo de memória e da capacidade de raciocínio.
Os casos graves de Covid-19 são a minoria, cerca de 5% do total. Diante de uma pandemia de grandes proporções, entretanto, um percentual pequeno pode significar números absolutos elevados. Entre cerca de 11 milhões de recuperados, por exemplo, os 5% se tornam 550 mil.
Nesse sentido, Prado, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, chama atenção para o fato que parte desse grande contingente vai precisar de acompanhamento médico por algum tempo, seja no SUS ou na saúde privada.
“E boa parte dos pacientes ainda pertence à população economicamente ativa. A gente precisa desmistificar um pouco essa ideia de que é só o idoso com comorbidade”, acrescenta.
‘Marco zero’
Os pulmões são uma espécie de “marco zero” para o Sars-CoV-2. Uma vez que o vírus consegue atravessar nossa barreira imunológica e se instala no pulmão, ele segue fazendo estragos em outros órgãos.
Um artigo publicado em abril na revista Science destacava que um possível sinalizador das regiões mais vulneráveis do corpo seria aquelas ricas em receptores chamados ECA2 (enzima conversora da angiotensina 2).
Com a função de regular a pressão sanguínea, essas proteínas ficam na superfície da célula e são usadas como porta de entrada pelo vírus, que utiliza a estrutura celular para se reproduzir.
Além dos pulmões (mais especificamente os alvéolos pulmonares), o ECA2 também é encontrado em órgãos como o coração, o intestino e os rins — que têm sofrido lesões importantes em pacientes em estado mais grave.
“Por isso dizemos que a covid-19 é uma doença sistêmica, e não apenas respiratória”, diz Dalcolmo, da Fiocruz.
Os cientistas ainda investigam se esses danos são causados diretamente pelo vírus ou por fatores indiretos ligados à doença.
Uma possibilidade, por exemplo, é que a “tempestade inflamatória” que o sistema imunológico gera para tentar combater o vírus, inundando o organismo de citocinas, acabe lesionando esses órgãos. Parte também pode ser uma consequência da própria infecção.
Rins e coração
Independentemente da causa, os cientistas procuram entender quais desses efeitos têm consequências de curto, médio ou longo prazo.
Um estudo recente — com resultados preocupantes — realizado na Alemanha apontou que, entre 100 pacientes recuperados, 78% apresentaram algum tipo de anomalia no coração mais de dois meses após a alta. Boa parte (67%) tivera uma forma branda da doença e sequer havia sido hospitalizada.
No caso dos rins, as evidências mostram uma incidência elevada de falência entre os casos mais graves de Covid-19.
Um amplo estudo com dados de pacientes internados em Nova York entre 1 de março e 5 de abril revelou que, dentre 5.449, mais de um terço, 1.993, desenvolveram insuficiência renal aguda.
Cérebro
A ocorrência de uma série de sintomas neurológicos que vão de confusão mental e dificuldade cognitiva a delírio também tem sido documentada entre pacientes com Covid-19.
No Brasil, uma força-tarefa do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (Inscer), vinculado à PUC-RS, investiga, entre outras frentes, quais sequelas podem ficar desses sintomas.
O neurologista Jaderson Costa da Costa, que coordena o grupo, conta que, entre os casos mais graves atendidos pela equipe no Hospital São Lucas, em Porto Alegre, têm sido observadas convulsões, casos de síndrome de Guillain-Barré (que ataca o sistema nervoso e causa fraqueza muscular) e de encefalite, a inflamação do parênquima do encéfalo.
Um estudo recente da University College London chamou atenção para um caso raro e grave de encefalite que tem acometido alguns pacientes com covid — a encefalomielite aguda disseminada.
Sistema vascular
Outra complicação neurológica que os médicos têm observado em pacientes com casos graves é a ocorrência de acidentes vasculares cerebrais (AVC).
Por alguma razão que os cientistas ainda desconhecem, o Sars-CoV-2 aumenta a tendência de coagulação do sangue.
Tanto que um fragmento de proteína usado no diagnóstico de trombose, o dímero-D, virou um marcador de gravidade para pacientes com Covid.
“Quando ele está alto, é um sinal de possível evolução para um quadro mais grave”, diz o pneumologista do Fleury João Salge.
A coagulação desenfreada pode levar a um tromboembolismo venoso — o bloqueio de uma via sanguínea, que pode acabar causando AVC, embolia pulmonar ou a necrose de extremidades, levando à necessidade de amputação, o que também tem sido observado em pacientes com covid.
“Essa dicotomia entre ‘morreu’ e ‘sobreviveu’ é errada”, diz o pneumologista Gustavo Prado, chamando atenção para a necessidade de se discutir a reabilitação dos recuperados.
Para ele, a ampla gama de possíveis sequelas deixadas pela Covid-19 e a dimensão da população atingida deveriam transformar esse processo de recuperação em uma questão mais ampla, que envolvesse uma estratégia de saúde pública e assistência social e incluísse profissionais da saúde de diferentes frentes.
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