A pandemia de covid-19 reduziu ainda mais a participação dos estrangeiros no financiamento da dívida pública do País, acelerando um movimento que já ocorria desde a perda do “selo de bom pagador” pelo Brasil, em 2015. De lá para cá, a parcela do investidor externo no estoque da dívida caiu de 20,8% para 9% em julho deste ano, o que dificulta ainda mais a tarefa do Tesouro de tentar alongar os prazos de pagamento da dívida.
Embora estejam na quarta colocação entre os principais detentores de títulos da dívida, atrás de fundos de previdência, fundos de investimento e instituições financeiras, os estrangeiros geralmente têm certa preferência por títulos mais longos, desde que confiem na situação macroeconômica de um país.
A saída significa, portanto, um sinal de que a visão de fora sobre o Brasil é, neste momento, de incerteza e risco.
Recentemente, o Tesouro fez o maior leilão da história em quantidade de papéis de curto prazo. A dívida que vai vencer em 12 meses (prazo curto) deve fechar o ano no maior patamar do PIB desde 2005.
Apenas entre janeiro e julho, a saída dos investidores estrangeiros de suas posições no Brasil ultrapassou US$ 30 bilhões (R$ 158 bilhões), segundo dados do Banco Central. Do total, um terço (US$ 10,8 bilhões, ou R$ 57 bilhões) saiu da renda fixa (onde estão os títulos do Tesouro). O restante deixou as aplicações em ações na B3, a bolsa paulista.
A perda do grau de investimento já havia tirado o Brasil das carteiras de vários fundos internacionais, mas as incertezas criadas pela covid-19 afastaram parte dos não residentes que ainda apostava nos papéis brasileiros.
“A pandemia trouxe um comportamento no mercado de preferência por liquidez. O investidor quer o dinheiro na mão, e não um ativo que ele pode levar meses para se desfazer, ainda mais no mercado internacional”, diz o coordenador-geral de operações da Dívida Pública do governo, Luis Felipe Vital.
A saída dos estrangeiros pressiona a taxa que os investidores em geral têm cobrado do Tesouro para comprar os títulos que são vendidos para financiar a dívida – eles querem receber mais do que o governo está disposto a pagar. E o prazo dos títulos tem ficado menor. Hoje, está entre 2,5 a 2,8 anos. Há um ano, era de 4,06 anos.
Armadilha
O economista Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central e colunista do Estadão, alerta que a estratégia do Tesouro Nacional de aumentar as emissões de títulos prefixados com prazos de vencimento menores tem fôlego curto e pode se transformar em uma armadilha se o governo não conseguir equilibrar as contas.
Segundo ele, o problema fiscal brasileiro se materializa na inclinação da curva de juros de longo prazo e no excesso de volatilidade do real em relação a outras moedas emergentes.
“O Tesouro tem a obrigação de minimizar o custo da dívida, e por isso se vê obrigado a vender título curtos, que têm taxas de juros menores. Mas, se o órgão vender apenas papéis curtos, daqui a um ou dois anos vai precisar começar a rolar a dívida no dia a dia, como já aconteceu nos anos 1970”, diz. “O Tesouro pode ficar preso em uma armadilha extremamente difícil.”
Sem reforma, nem fim da pandemia deve trazer investimentos
A avaliação do Tesouro Nacional é que o fim da pandemia não garantirá o retorno imediato dos estrangeiros e que a volta depende da aprovação de reformas.
Para o coordenador-geral de operações da Dívida Pública do governo, Luis Felipe Vital, pode até haver movimentos especulativos em determinados momentos, mas a volta dos investidores institucionais – que apostam no Brasil no longo prazo – depende da aprovação de mais reformas e de sinais claros de retomada da economia.
“Estamos falando de uma agenda de reformas que não são de curto prazo. Apenas o fim da pandemia não é um gatilho para esse retorno. Esse fluxo é rápido para cair, e mais lento para voltar. É um trabalho gradual.”
Para o economista Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central, é preciso intensificar a agenda de reformas para evitar que essa situação se prolongue. Ele lembra que a economia com reforma da Previdência ficou menor que na proposta original e que o projeto de reforma administrativa, que prevê economia no gasto com o funcionalismo, não afeta os servidores atuais.
“As propostas do governo não resolvem o problema. A equipe econômica tenta gambiarras para resolver o fiscal um ano ou dois anos à frente. A dívida hoje não é sustentável, porque não há regime fiscal crível com garantia de que a dívida pode ser paga.”
O economista Carlos Kawall, diretor da Asa Investiments e ex-secretário do Tesouro, também defende que a crise seja oportunidade para o País se fortalecer, e não para gastar mais.
“Uma coisa é financiar a dívida em 2020. Outra é achar que vamos fazer isso para sempre”, diz. “Mas parece que o governo – não estou falando da equipe econômica – escolheu fazer piquenique na beira do vulcão.”
Kawall critica as sinalizações de parte do governo de Jair Bolsonaro e do Congresso de que alguns gastos emergenciais do período de pandemia poderão continuar no próximo ano. Segundo ele, em crises anteriores o Brasil cometeu erros semelhantes.
“Em 2007 e 2008, enfrentamos muito bem a crise internacional. Éramos grau de investimento e pudemos gastar”, lembra. “No momento subsequente, deixamos de fazer as reformas e passamos a romper a institucionalidade fiscal.”
Embora a dinâmica de encurtamento da dívida continue para 2021, o coordenador-geral de Planejamento Estratégico da Dívida Pública do Tesouro Nacional, Luiz Fernando Alves, garante que o Tesouro retornará à estratégia de alongamento dos prazos dos papéis em 2022 e 2023.
“Os efeitos da pandemia sobre o quadro fiscal tendem a ficar restritos em 2020, e a agenda de reformas favorecerá essa mudança de perfil”.
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