Presidente Jair Bolsonaro afirmou que ‘ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina’, no entanto a legislação brasileira já prevê diversas hipóteses de vacinação obrigatória. ‘O direito à liberdade individual não é absoluto a ponto de estar acima do bem coletivo’, explica constitucionalista. Idoso durante vacinação
Arquivo/Marcos Serra Lima/ G1
Na terça-feira (1º), o presidente Jair Bolsonaro afirmou que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”, em referência a uma possível futura campanha de vacinação contra a Covid-19.
A declaração foi criticada por médicos, infectologistas e constitucionalistas: segundo eles, desestimular a vacinação é inconstitucional e pode trazer graves prejuízos ao combate à pandemia e outras doenças.
A fala de Bolsonaro foi publicada nas redes sociais pela Secretaria de Comunicação do governo. “O Governo do Brasil investiu bilhões de reais para salvar vidas e preservar empregos. Estabeleceu parceria e investirá na produção de vacina. Recursos para estados e municípios, saúde, economia, TUDO será feito, mas impor obrigações definitivamente não está nos planos”, escreveu o órgão, no Twitter, acompanhado por um banner com a frase do presidente e os dizeres de que o governo “preza pela liberdade dos brasileiros”.
O Brasil já registrou mais de 122 mil mortes por covid-19, além de quase 4 milhões de infecções.
Se por um lado a fala de Bolsonaro pode incentivar ainda mais o crescimento do movimento antivacina, dizem médicos, por outro ela está equivocada e seria inconstitucional, segundo constitucionalistas ouvidos pela BBC News Brasil.
A Constituição brasileira permite, sim, que o governo crie mecanismos para obrigar que as pessoas se vacinem — não só pode, como tem o dever de fazê-lo, explica Roberto Dias, professor de direito constitucional da FGV (Fundação Getulio Vargas).
Isso porque, em casos como esse, a Justiça coloca na balança dois direitos: de um lado, a liberdade individual e, de outro, a saúde pública — e, no caso de epidemias de doenças que são uma clara ameaça à saúde pública, como a Covid-19, o direito à saúde pública é prevalente, afirma Dias.
“Nenhum direito fundamental é absoluto, ou seja, o direito à liberdade não é absoluto a ponto de estar acima do direito à saúde das outras pessoas”, afirma a professora de direito constitucional Estefânia Barbosa da UFPR (Universidade Federal do Paraná).
Há diversos dispositivos na legislação brasileira que permitem a vacinação obrigatória — da Constituição a uma lei assinada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro em fevereiro, a Lei 13.979, que autoriza autoridades a tomar medidas como tornar compulsória a vacinação.
Direito de todos, dever do Estado
Caso a ciência encontre uma vacina efetiva e segura contra a Covid-19, o governo tem não só a possibilidade como o dever de incentivar a aplicação e torná-la disponível aos brasileiros, explica Dias. Isso porque o Artigo 196 da Constituição Federal determina que saúde é um direito de todos e um dever do Estado.
O Estado tem obrigação constitucional de implementar políticas sociais que visem à redução do risco de doenças, afirma Dias.
“Num momento como esse, em que vacinas, desde que tenham passado por todos os testes e sejam recomendadas pelas autoridades de saúde, serão possivelmente a melhor resposta para a pandemia, o governo tem a obrigação de divulgar, incentivar e garantir uma política pública ampla de vacinação” afirma Roberto Dias.
Por isso, defende o constitucionalista, falas do presidente que desestimulem a vacinação ferem esse dever e são inconstitucionais.
“A dimensão objetiva do direito à saúde significa que o poder público tem o dever de garantir esse direito a todos, independentemente de pleitos individuais ou coletivos”, explica Estefânia Barbosa, professora de direito constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná).
E deixar de se vacinar não é apenas uma questão de escolha individual, é uma atitude que afeta toda a coletividade, explica o cientista Fernando Rosado Spilki, presidente da Associação Brasileira de Virologia.
“Se uma parcela importante da população não se vacina, o vírus continua circulando em níveis que permitem sua manutenção prolongada na população, trazendo evidentes danos à saúde e por conseguinte à economia, além de todos os outros aspectos afetados por eventuais quarentenas”, explica.
Segundo Spilki, escolher não se vacinar contra a Covid-19 por ideologia ou qualquer outro motivo poderia prejudicar pessoas que não podem receber a imunização por problemas médicos. “É preciso considerar que o vírus acaba chegando em pessoas que, mesmo querendo, não tiveram acesso à vacina ou não puderam se vacinar por causa de outras doenças, como pacientes imunossuprimidos, em tratamento de câncer, etc”, afirma.
“Não aderir à vacinação será acima de tudo uma falta de civilidade, de compromisso público e de respeito ao próximo, de solidariedade”, diz Spilki.
Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBMi), também ressalta o caráter cidadão de tomar uma vacina. “A gente tem nas vacinas as melhores ferramentas de proteção individual e pública. Quando você se vacina, não está protegendo apenas você mesmo, mas a comunidade”, diz.
Para Isabella Ballalai, vice-presidente da SBMi, afirma que a fala do presidente pode “confundir ainda mais (as pessoas) em um momento em que tudo já está bastante confuso.”
“Um exemplo do que pode ocorrer com diminuição de cobertura de vacina é o sarampo. O Brasil ficou vários anos sem sarampo, e agora tem milhares de casos porque uma pequena parte da população deixou de se vacinar”, explica.
Segundo Ballalai, a fala de Bolsonaro contraria inclusive ações do próprio Ministério da Saúde. “A equipe nacional de imunizações do ministério tem feito um trabalho duro para colocar em dia a cobertura de vacinação, que caiu por causa da pandemia. Então, essa declaração é contraditória com ações do próprio governo, além de ser irresponsável”, diz.
De acordo com Rômulo Leão Silva Neris, doutorando em inflamação e imunidade pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, a chamada imunidade coletiva (quando a maior parte da população fica imunizada contra uma doença) foi alcançada na era moderna por causa das vacinas.
“Uma série de doenças foram erradicadas ou estão sob controle porque tivemos programas de vacinação eficientes. As vacinas conseguem impedir a circulação do seu agente causador (da doença) na sociedade. Por isso é fundamental que qualquer campanha de vacinação atinja o maior número de pessoas possível”, explica.
Os especialistas afirmam ainda que, caso o governo faça uma boa campanha de divulgação da vacinação e a torna disponível e de fácil acesso em todo o território, a sua obrigatoriedade pode nem ser necessária — diversas campanhas de vacinação muito bem sucedidas já foram feitas no Brasil sem que tomar a vacina fosse obrigatório.
Liberdade individual x direito coletivo à saúde
A questão jurídica sobre o direito à liberdade individual versus o direito coletivo à saúde no caso das vacinas recomendadas por autoridades de saúde já está bastante resolvida no Brasil, explicam os constitucionalistas.
O governo não pode criar uma vacinação em que as pessoas sejam fisicamente forçadas a se vacinar, afirma Dias. O esforço de uma vacinação obrigatória é feito “através de mecanismos (para que elas se vacinem), como o condicionamento do exercício de certos direitos à vacinação”.
Ou seja, é possível criar normas que restrinjam o acesso a direitos — como viagens, benefícios do governo etc. — caso a pessoa se recuse a se vacinar. É algo que funciona mais ou menos nos mesmos moldes da votação obrigatória, em que, se a pessoa não vota nem justificar, perde direitos como se inscrever em concurso público, obter passaporte, etc.
Isso, na verdade, já é previsto na legislação brasileira em diversos casos. As normas que regulam a distribuição do Bolsa Família, por exemplo, determinam que para entrega do benefício é preciso algumas condições, entre elas manter a vacinação das crianças em dia.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu Artigo 14, também estabelece que os pais têm o dever de vacinar as crianças, e podem ser multados caso não o façam.
“Já temos várias leis que restringem a liberdade individual em função do bem coletivo e que não implica em descumprimento da Constituição”, explica Barbosa.
“A nossa leitura do direito individual não está desligada da vida coletividade”, afirma o professor de direito Wallace Corbo, da FGV-Rio.
Acreditar em teorias da conspiração (como a de que vacinas causam autismo, algo falso, de acordo com a ciência) não é um motivo legítimo para colocar a saúde das outras pessoas em risco, explica Corbo.
O constitucionalista afirma que, caso as autoridades de saúde brasileira aprovem a vacina, recomendem seu uso e garantam sua segurança, não há nenhum motivo para um indivíduo argumentar que a vacina fere seus direitos individuais.
“Hoje o risco máximo que existe em você tomar algumas vacinas é ter alguns sintomas, ou podemos falar no transtorno de ter que sair de casa para tomar”, diz ele.
“A gente pesa o benefício coletivo contra o risco individual da vacina, e como os riscos de vacinas aprovadas pelas autoridades em geral são muito pequenos, a gente considera que a vacinação obrigatória não infringe nenhum direito fundamental. Na verdade, a saúde coletiva é uma condição para o exercício dos direitos.”
Corbo afirma que o indivíduo pode ter uma razão verdadeiramente legítima para não se vacinar — como ser imunodeprimido, por exemplo — e nesses casos fica dispensado em caso de uma obrigatoriedade. Mas é justamente para proteger essas pessoas que não podem se vacinar que a vacinação coletiva é importante, explicam os médicos.
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