O lado obscuro das pessoas de grande caráter e autocontrole


Pessoas com grande força de vontade costumam ser exaltadas em relação àqueles com menor autocontrole. Mas estudos recentes têm mostrado que, quando o jogo muda, o comportamento moral também muda. Acredite: a capacidade de autocontrole também tem seu lado sombrio, mostrou experimento na França
Pexels
Há alguns anos, 80 pessoas na França participaram de um jogo experimental no que parecia ser um programa-piloto de TV chamado La Zone Xtrême.
Inicialmente, os participantes foram informados apenas que seriam organizados em pares — um sendo o “interrogador” e o outro, o “concorrente”.
Mas assim que as luzes se acenderam e todas as regras foram explicadas, o rumo foi sombrio.
Os interrogadores foram informados de que teriam que punir os concorrentes com choques elétricos para cada resposta errada.
Também seria preciso aumentar a intensidade do castigo a cada erro, até chegar a 460 volts — mais do que o dobro da voltagem de uma tomada europeia.
Se a dupla passasse de 27 rodadas, venceria o jogo.
Cada concorrente foi então levado para uma sala trancada e amarrado em uma cadeira. Já o interrogador se sentou no centro do palco.
O jogo começou.
Como se tratava apenas de um programa-piloto, os participantes foram informados de que não haveria um prêmio em dinheiro ao fim.
Mesmo assim, a grande maioria dos interrogadores continuou aplicando choques, mesmo depois de ouvir gritos de dor vindos da sala.
Felizmente, os gritos eram apenas uma atuação — ninguém foi realmente eletrocutado.
Os interrogadores estavam participando, sem saber, de um experimento elaborado para explorar como vários traços de personalidade podem influenciar o comportamento moral.
Embora se pudesse esperar que os mais perversos fossem pessoas impulsivas e antissociais, ou pouco persistentes, cientistas franceses descobriram exatamente o oposto.
Os participantes que estavam dispostos a dar mais e maiores choques eram justamente aqueles associados a um comportamento cuidadoso, disciplinado e moral.
“Pessoas acostumadas a serem organizadas e dóceis, com boa integração social, têm mais dificuldade em desobedecer”, explica Laurent Bègue, psicólogo e pesquisador da Universidade de Grenoble-Alpes que analisou o comportamento dos participantes.
Essa descoberta se soma a uma série de estudos que já mostraram que pessoas com alto autocontrole e disciplina têm um lado obscuro surpreendente.
O controverso ‘Experimento de Aprisionamento de Stanford’, interrompido após sair do controle
E este acúmulo de evidências pode nos ajudar a entender por que cidadãos exemplares às vezes se tornam tóxicos, e também a compreender comportamentos antiéticos em nossos locais de trabalho e além.
Superando impulsos
Por décadas, o autocontrole foi visto como algo exclusivamente positivo e vantajoso.
Essa qualidade pode ser avaliada de várias maneiras, desde questionários que “medem” nosso nível de autodisciplina e organização até experimentos sobre força de vontade, como o famoso “teste do marshmallow”.
Nesses casos, pessoas com alto autocontrole apresentaram melhor desempenho na escola e no trabalho e adotaram estilos de vida mais saudáveis, pois eram menos propensas a comer demais ou a usar drogas, e mais propensas a praticar exercícios.
Pesquisas também descobriram que a capacidade de superar os impulsos mais básicos também significava fazia aqueles com maior autocontrole ter menos propensão a agir de forma agressiva ou criminal.
Assim, por muito tempo se acreditou que o autocontrole representa o caráter de alguém. Alguns estudiosos chegaram a comparar isto a um “músculo moral” que determinaria nossa capacidade de agir com ética.
Em meados da década de 2010, porém, Liad Uziel, da Universidade Bar-Ilan de Israel, começou a investigar a importância do contexto nas nossas decisões de autocontrole.
Uziel partiu da hipótese de que o autocontrole é apenas uma ferramenta para atingir objetivos, e que estes podem ser bons e ruins.
Em muitas situações, nossas normas sociais recompensam as pessoas que cooperam com outras, de modo que as pessoas com alto autocontrole seguem essa linha alegremente. Mas, se mudarmos essas normas sociais, então elas podem ser menos escrupulosas em suas relações com os outros, propôs o pesquisador.
E para testar a ideia Uziel recorreu a um experimento psicológico chamado “jogo do ditador”, no qual um participante recebe uma quantia em dinheiro e tem a oportunidade de compartilhá-la com um parceiro.
Graças às normas sociais de cooperação, as pessoas costumam ser muito generosas.
“Racionalmente, não há razão para dar ao segundo jogador qualquer quantia”, explica Uziel, “mas as pessoas geralmente dão cerca de um terço da verba para os outros.”
Só que os pesquisadores também descobriram que as pessoas com alto autocontrole só eram generosas se temessem ser julgadas por seu comportamento mesquinho, ao passo que, se suas ações fossem mantidas em sigilo, eram muito mais egoístas do que as pessoas consideradas tendo pouco autocontrole.
No experimento, uma vez que o medo do julgamento dos outros desapareceu, os “autocontrolados” escolheram seus próprios interesses em vez de ajudar os outros, ficando com quase todo o dinheiro.
Pessoas com autocontrole alto também parecem ter mais cuidado ao cometer um ato antissocial, evitando assim serem flagradas.
Na Universidade de Western Illinois, nos EUA, David Lane e seus colegas fizeram questionários sobre comportamentos desviantes e consequências de certas ações.
A equipe descobriu que pessoas com alto autocontrole tinham maior probabilidade de tentar escapar de penas por dirigir perigosamente e trapacear em testes, em comparação com pessoas com menos autocontrole.
Mais uma vez, as pessoas mais “autocontroladas” pareciam estar avaliando cuidadosamente as normas sociais, e aderindo a elas quando a transgressão pudesse ser mais prejudicial à sua reputação.
Máquinas de extermínio
Até agora, falamos de atos morais questionáveis. Mas dependendo do contexto, uma forte força de vontade pode contribuir também para atos de crueldade.
Em um estudo macabro, Thomas Denson, psicólogo da Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, convidou participantes ao laboratório para… colocar insetos em um moedor de café.
Sem que os participantes soubessem, a “máquina de matar” foi construída para permitir que os insetos escapassem antes de serem mortos, mas o moedor ainda emitia um grunhido desconcertante conforme os insetos passavam pela máquina.
Foi dito que o objetivo era compreender melhor certas “interações entre humanos e animais” — uma justificativa que possivelmente tornou o ato mais socialmente aceitável para os participantes.
Para os participantes que demonstravam maior autocontrole, aumentou significativamente o número de insetos que eles estavam dispostos a matar.
Eles pareciam mais dispostos a atender ao pedido dos cientistas e tinham maior capacidade de superar qualquer sentimento de aversão à tarefa, tornando-os assassinos mais eficientes.
Os participantes do La Zone Xtrême mostraram um padrão de comportamento muito parecido, mas em escala bem maior.
O jogo francês foi inspirado nos polêmicos experimentos de Stanley Milgram na década de 1960 que testaram se os participantes estariam dispostos a torturar outra pessoa com choques elétricos em nome da ciência.
O experimento de Milgram foi conduzido para mostrar a obediência inabalável das pessoas à autoridade. Depois, os pesquisadores franceses quiseram saber que tipos de personalidades eram mais suscetíveis a ela.
Eles descobriram que aqueles com maior autocontrole estavam dispostos a descarregar cerca de 100 volts a mais em seus colegas — a ponto destes pararem de gritar, fingindo inconsciência ou morte.
Curiosamente, o desejo de agradar aos outros era outro traço de personalidade associado a esse comportamento insensível.
“Eles tendiam a eletrocutar mais a vítima, provavelmente para evitar um conflito desagradável com o apresentador de televisão”, disse Bègue.
“Queriam ser pessoas confiáveis e manter seu compromisso.”
Em seu artigo, a equipe de Bègue relaciona as descobertas com o estudo feito pela filósofa Hannah Arendt sobre o oficial nazista Adolf Eichmann.
Arendt cunhou o famoso termo “banalidade do mal” para descrever como as pessoas ordinárias, como Eichmann, podem cometer atos de grande crueldade.
E, de acordo com a pesquisa de Bègue, os traços que levam as pessoas a agirem de forma imoral podem ser não apenas ordinários, como desejáveis em várias situações.
Afinal, são pessoas em “conformidade” normalmente as melhores candidatas a empregos e a cônjuges.
Consequências no ambiente de trabalho
Bègue enfatiza que sua pesquisa precisa ser replicada antes que possamos tirar conclusões mais genéricas sobre a natureza humana.
Entretanto, é interessante especular se características como alto autocontrole podem prever o envolvimento de alguém em atos cotidianos imorais, de pequenos a grandes.
Para Lane, tudo dependeria da força das normas sociais. E há algumas evidências para apoiar isso: por exemplo, a evasão fiscal aumenta com o escrúpulo.
Enquanto isso, no ambiente de trabalho, funcionários exemplares também podem ser aqueles que roubam da empresa sob a ideia de que ninguém dará falta do dinheiro.
Uziel, por sua vez, suspeita que alguém com alto autocontrole tem mais probabilidade de agir impiedosamente quando a coesão do grupo começa a desmoronar, incluindo momentos em que seu próprio senso de poder ou autoridade é ameaçado, ou quando ela se sente em perigo.
Nessas condições, por exemplo, tais pessoas podem “apunhalar alguém pelas costas” buscando uma nova promoção; ou curvar-se diante de um chefe sem levar em conta como seu comportamento afetará os outros.
Assim, podemos começar a apreciar um pouco mais as pessoas ao nosso redor que são um pouco menos disciplinadas e obedientes do que as outras.
Elas podem nos decepcionar com sua falta de confiabilidade, mas pelo menos no jogo La Zone Xtrême seriam o tipo de pessoa que você gostaria de ter em seu caminho.
Leia a história original em inglês na BBC WorkLife
Veja VÍDEOS sobre Ciência e Saúde:

Compartilhe