A sociedade em rede aflora avessos históricos, posto que antigamente se considerava o esquecimento uma rigorosíssima penalidade, e não um Direito: em Roma o instituto então denominado damnatio memoriae (condenação da memória) era exceção que visava apagar os rastros históricos dos condenados, assim como no judaísmo uma das maldições mais severas é o blasfematório yimach shemo, ou “que seu nome seja apagado da memória das pessoas”. Em sentido diametralmente diverso, um dos temas previstos para julgamento na sessão do Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) desta quarta-feira (30/09/20) refere-se a aplicação do “Direito ao Esquecimento” na esfera civil, que segundo a relatoria repercutirá em toda a sociedade e consiste no equilíbrio entre a liberdade de expressão e o direito à informação, em contraponto à dignidade da pessoa humana e suas consequências, como a inviolabilidade da imagem, da intimidade e da vida privada.
O caso objeto do julgamento, trata de uma ação proposta pela família da vítima de um crime rumoroso ocorrido em 1958 no Rio de Janeiro, que reviveu todos os problemas e sentimentos por conta de sua reprodução em um programa televisivo exibido após mais de quatro décadas do ocorrido, revolvendo questões que na ótica dos autores já teriam sido abstraídas pela sociedade pelo transcurso do tempo. O debate gira em torno do direito das vítimas ou de seus familiares em não terem questões tormentosas trazidas à tona anos após o ocorrido, e apesar do caso concreto não envolver redes sociais e sites de buscas na internet, sua solução certamente os afetará, haja vista que será proferido na era da sociedade da informação.
Muito se discute sobre o direito ao esquecimento e os exemplos acadêmicos são variados, como do indivíduo que comete determinado ilícito, e pelas regras do nosso sistema é condenado a pagar sua dívida para com a sociedade com pena de reclusão, mas mesmo após retornar à liberdade terá sempre seu nome atrelado ao ocorrido. O problema orbita a subjetividade do tema, pois não há como determinar uma regra geral que abranja todas as hipóteses, uma vez que se a decisão levar em conta apenas o aspecto temporal, contrario sensu, o medalhista olímpico também não poderá ter seus êxitos rememorados. E mesmo que se cinja a limitação de exposição a questões deletérias, permanecerá, ainda, a subjetividade de quais condutas deverão ser encampadas pelo julgado e quais não, fazendo com que um círculo vicioso se forme, pois, dado à peculiaridade de cada caso, se devolverá ao próprio Judiciário a análise das especificidades de qualquer ação que seja movida nestes termos.
A prevalecer o direito ao esquecimento sem qualquer distinção efetiva, certamente haverá impacto direto na história e na sociedade, haja vista que assuntos como consequências de regimes ditatoriais não teriam discussões, reparações e registros adequados no futuro. A sessão de julgamento do Recurso Extraordinário nº 833248 (substituído para julgamento de tema de repercussão geral pelo processo nº RE 1010606) está agendada para às 14h00, e será realizada por meio de videoconferência com transmissão ao vivo pela TV Justiça e pelo canal do STF no YouTube.
*Marcelo Escobar é advogado, professor e músico. Escreve às quartas-feiras sobre assuntos jurídicos e seus impactos na vida cotidiana.
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