Trindade: Como o novo coronavírus se espalhou pelo Palácio do Planalto

Foi uma viagem produtiva, o presidente Jair Bolsonaro voltava dos Estados Unidos. A comitiva, cansada, ressonava cada um no seu setor e a ala do presidente, parte nobre da aeronave, estava quieta depois de conversas intensas sobre os encontros com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, empresários e autoridades do governo. Falavam sobre o tratamento recebido e as perspectivas de relacionamento futuro. O presidente Jair Bolsonaro já tinha jantado e recebia relatos do que encontraria no Brasil ao desembarcar no dia seguinte na Base Aérea. Nem tudo naquele voo era tranquilidade e comemoração. Um dos mais próximos assessores do presidente, justamente o responsável pelas divulgações do governo, o secretario Fabio Wajngarten ardia em febre com dores pelo corpo e no fundo do olho. A garganta ardia como se estivesse sendo espetada. O médico do presidente que sempre faz parte das comitivas presidenciais foi chamado e diagnosticou: “Pode ser o novo coronavírus, os sintomas coincidem e só um teste pode confirmar”. Enquanto isso, Wajngarten foi acomodado na última fileira da aeronave, recebeu máscara, que naquela época era um assessório estranho, só usado por profissionais de saúde, e tomou antitérmicos. Do voo, o secretario saiu para um hotel, recebeu o resultado positivo do exame e ficou isolado por quase duas semanas sem ver mulher, filhos e família. Um processo difícil para ele e novo no Brasil. A Covid-19 estava chegando e rondando o poder. Foi o primeiro caso de muitos que viriam a ser confirmados no Palácio. 

Este caso no avião presidencial foi apenas um estopim. Depois disso, 26 passageiros deste voo acabaram contraindo o novo coronavírus, sem contar os que escaparam deste momento, mas se infectando depois. É o caso do próprio presidente Jair Bolsonaro. Logo de cara, 19 pessoas da comitiva apresentaram sintomas e testaram positivo, entre eles os ministros Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional e Bento Albuquerque, de Minas e Energia. O presidente da Apex, Agência Brasileira de Promoção de Exportações, Sérgio Segovia, não estava no avião, mas fazia parte da comitiva e testou positivo. Também da comitiva, o deputado Daniel Freitas, do PSL de Santa Catarina, o presidente da Federação das Indústrias de Minas Gerais, Flávio Roscoe e o secretario especial de Comércio Exterior, Marcos Troyjo.  O presidente da CNI, Confederação Nacional da Indústria, Robson Andrade e outros integrantes, como funcionários do GSI e da equipe do presidente, testaram positivo e o número cresceu e passou de 26 confirmados. Isso foi no início da pandemia, na primeira quinzena de março. Alguns estiveram com o presidente e outros apenas participaram da comitiva.

O Palácio do Planalto se transformou em epicentro do vírus em Brasília. Senadores foram na viagem e levaram a contaminação para o Congresso e os poderosos de plantão ficaram assustados. O presidente do Senado, senador Davi Alcolumbre teve sintomas e o resultado do exame foi positivo para o novo coronavírus.  O caso da comitiva teve repercussões internacionais, já que o presidente e sua equipe se encontraram com representantes de outros países e alguns dos contaminados, inclusive o presidente. Eles estiveram na Casa Branca, sede do poder Norte Americano e próximos ao presidente Donald Trump. Naquele momento, o sentimento do núcleo do poder por aqui era de que se tratava de uma doença que poderia ser tratada com remédio e passaria rápido, como uma “gripezinha”. O então ministro da Saúde, Henrique Mandetta, é que fez esta comparação, e não o presidente Jair Bolsonaro. 

Mandetta levou ao presidente uma projeção catastrófica.  Segundo ele os hospitais ficariam superlotados, as pessoas morreriam em casa e alguns abandonados pelas ruas. “Presidente, o senhor verá carros do Exército recolhendo corpos pelas ruas se não houver uma quarentena rigorosa”, chegou a dizer Henriqrue Mandetta, mas Bolsonaro não acreditou. A opinião pública deu crédito e foi aí que os governadores iniciaram o processo de fechamento. Houve um pânico entre os administradores, todos temiam levar nas costas a responsabilidade de mortes por falta de atendimento. A quarentena se espalhou pelo país e Bolsonaro foi contra o fechamento e saiu em defesa da economia, com preservação das vidas frágeis, ou seja, os portadores de comorbidades preexistentes que deveriam ser protegidos a todo custo, inclusive com ajuda do governo. Foi derrotado o presidente, sua tese e suas ações. O Supremo decidiu que os prefeitos e governadores é que definiriam as ações contra o novo coronavírus e a sentença encorajou juízes e desembargadores que passaram a comandar como se fossem donos do poder. Não era mais o prefeito ou o governador, a decisão de abrir ou fechar passou a ser da Justiça e do Ministério Público. Esta confusão prejudicou o enfrentamento e cancelou a possibilidade de um plano nacional. 

Apesar das desinfecções insistentes no Palácio, o vírus rodou o coração do poder. O porta-voz, general Rêgo Barros, doutor em ciências militares, foi surpreendido pelos sintomas, e 10 ministros acabaram contraindo o vírus, a maioria com sintomas leves. Bolsonaro fez questão de dizer que “ninguém morreu por aqui”. Só que nesta infestação, o vírus desconhece patente, poder e parentes. Chegou ao presidente, que ficou isolado no Palácio da Alvorada a conversar com emas. Passou como um furacão pela Esplanada dos Ministérios e chegou a 10 ministros. Na família do presidente, foram contaminados o filho Renan, a mãe dele, Ana Cristina Valle, a mulher Michelle Bolsonaro e agora o senador Flávio Bolsonaro.  Mesmo depois de todas as infecções, o presidente continua na mesma toada, para ele é uma doença que vitima os fracos. Faz também uma propaganda forte para a hidroxicloroquina e alerta “se infectados, os bundões da imprensa a chance de sobreviver é bem menor”. O vírus continua solto e desconhece fronteiras, nacionalidades e poderes. 

*José Maria Trindade é repórter e comentarista de política da Jovem Pan.

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