Entre aqueles que estão na linha de frente contra as chamas, dezenas vivem de contratos temporários com Ibama e recebem um salário mínimo por mês. Foto mostra brigadistas do Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo), ligado ao Ibama, em Mato Grosso do Sul. Trabalho na base em Corumbá costuma começar às 8h – sem hora para acabar.
Prevfogo
Assim como milhões brasileiros, Washington Rojas, natural de Corumbá (MS), trabalha “com o que aparece”.
Em 2019, foi uma empresa de refrigeração. Depois, uma companhia de encanamento. Isso de janeiro a junho.
Nos últimos 6 anos, quando chega o mês de julho ele “vira a chave”. Rojas é um dos 90 brigadistas do Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) no Mato Grosso do Sul.
Os profissionais que há mais de um mês estão na linha de frente contra o fogo que consome parte do Pantanal têm um contrato temporário com o Ibama, que em geral se estende até dezembro, e passam por uma semana de treinamento.
A remuneração para a grande maioria é de um salário mínimo, R$ 1.045. Chefes de esquadrão como Washington, que tem 24 anos, recebem um pouco mais.
A rotina, que via de regra é de grande desgaste físico e mental, tem sido extenuante.
O bioma vive a maior temporada de queimadas em décadas. Mesmo com o reforço das Forças Armadas, que têm cedido seus barcos e aviões e dado apoio logístico, o fogo já consumiu 1,5 milhão de hectares. Desse total, 910 mil estão em Mato Grosso do Sul e o restante, em Mato Grosso.
A chuva que caiu na região de Corumbá nos últimos dias ajudou a aliviar um pouco a situação, diz o supervisor de brigadas do Prevfogo Bruno Águeda, mas não foi suficiente para encharcar o solo. A onda histórica de frio que deve tomar conta do país nos próximos dias também não anima a equipe, já que o frio na região geralmente é seco.
No ano passado, ele conta, a última operação ocorreu em meados de novembro.
‘Horário de pico’ do fogo
O trabalho começa em geral às 8h e não tem hora para acabar.
“Quando a gente vê que dá pra vencer o fogo, a gente continua”, diz Rojas. “Já cheguei a virar noite.”
O combate noturno acaba sendo mais frequente do que os brigadistas gostariam. Isso porque o fogo tem “horário de pico”. Se o intervalo entre 10h e 14h é o período mais crítico, depois que o sol se põe, quando a temperatura geralmente cai e a umidade aumenta um pouco, às vezes é mais fácil apagar as chamas.
É também o período mais perigoso para se trabalhar, emenda Heuler Hernany, de 25 anos, que também é chefe de esquadrão.
Há três anos ele atua como brigadista entre julho e dezembro. Descobriu o concurso do Ibama quando fazia um bico de entregador e viu um cartaz com o edital no escritório em Corumbá.
No início, a mãe estranhava quando o filho não voltava para casa. “Ela ia bater na porta do Prevfogo”, conta.
Como muitas regiões são de mata fechada — o que, aliás, torna o acesso às áreas de incêndio muitas vezes um desafio tão duro quanto o fogo em si —, o risco de ser picado por um animal peçonhento aumenta quando está tudo escuro.
As imagens que mais impressionam do fogo, para ele, são dos animais fugindo — ou carbonizados. Rojas já viu 5 jacarés queimados de uma vez só. Hernany já viu filhote de macaco, tatu. “Você vê o animal todo encolhido, dá muita dó. Parece cena de filme.”
Em geral, os bichos mais lentos são os mais vulneráveis, mas há situações em que o fogo brota de repente e qualquer um pode se ver cercado.
O fogo que ‘aparece do nada’
O combate ao fogo na região do Pantanal tem uma série de particularidades, entre elas uma espécie de “fogo subterrâneo” que queima despercebido até que emerge para a superfície.
É o chamado “fogo de turfa”, explica Águeda.
As secas e cheias que marcam as estações na região vão criando camadas de matéria orgânica no solo. É como se fosse um sanduíche, diz ele: uma camada de terra, outra de vegetação, outra de terra, e por aí vai.
Às vezes, o fogo consegue atingir uma dessas camadas mais profundas, ricas em matéria orgânica e altamente inflamáveis, e vai se espalhando por baixo da camada mais superficial da terra até encontrar alguma fissura e uma vegetação mais seca para emergir.
“Ele aparece do nada”, diz ele.
Outro inimigo dos brigadistas é o vento, que às vezes muda subitamente de direção e leva o fogo junto.
E às vezes isso acontece depois de um longo dia de trabalho, quando eles levaram horas fazendo os chamados aceiros: a retirada de uma faixa da vegetação para tentar brecar o avanço do fogo.
“Às vezes o brigadista passa o dia inteiro batendo enxada e o vento leva o fogo para outro lado”, diz o supervisor de brigadas.
‘Sensação de impotência’
“A gente pode ter feito tudo, mas às vezes o vento muda e joga uma fagulha a 100 metros”, diz o tenente-coronel Rodrigo Bueno, do Corpo de Bombeiros do Mato Grosso do Sul.
“A coisa que mais choca é a sensação de impotência”, diz ele, que há 10 anos está na corporação.
Os bombeiros militares são os outros protagonistas da força-tarefa que tenta controlar os incêndios florestais no Pantanal. De acordo com o último relatório sobre a operação, 81 bombeiros do Mato Grosso do Sul e 42 do Mato Grosso lutavam contra as chamas.
Dada a dimensão dos incêndios neste ano, foram montadas três bases para o combate: na região de Poconé/Sesc Pantanal (MT), em Corumbá (MS) e na terra indígena dos Kadwéus (MS).
O trabalho pode ser feito pelas equipes locais a partir das bases, com saídas diárias, como tem sido o caso dos chefes de brigada do Prevfogo Rojas e Hernany, ou por meio de missões, quando as áreas são mais afastadas ou o pessoal vem de outra região.
Esse é o caso do tenente Bueno, que fica em Maracaju (MS) e se voluntariou para passar 10 dias na base do Sesc Pantanal.
Em geral, a equipe se reúne às 6h da manhã para delinear a estratégia do dia e costuma voltar em torno de 19h. Mas não são raros aqueles que já passaram mais de 24 horas trabalhando sem interrupção.
‘Operação Dito Verde’
No dia em que conversou com a reportagem, o bombeiro havia retornado quase 8 da noite, depois de um dia intenso.
De helicóptero, ele fora enviado à área da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) do Sesc Pantanal para proteger a casa da única pessoa que há décadas vive na área de conservação: seu Dito Verde, “uma lenda do Pantanal”.
“Era uma casinha de barro, com telhado de sapê, toda feita por ele.”
A missão da equipe era evitar que o fogo que consumia o mato no entorno chegasse lá. Para isso, os bombeiros puxaram água do rio mais próximo, armazenaram-na em um reservatório improvisado e, com uma motobomba, usaram-na contra as chamas.
A seca que atinge a região impôs um desafio adicional: como o nível dos rios está muito abaixo da média, a equipe teve de caminhar uma longa distância até a margem.
“Na cheia, o rio chega bem perto da casa dele”, diz o tenente.
A primeira folga em um mês
Em uma década como bombeiro, ele diz que nunca viu uma operação de combate a incêndios florestais na região nessas proporções.
Hernany, do Prevfogo, teve o primeiro dia de descanso depois de um mês intenso de trabalho no Dia dos Pais, 9 de agosto.
Assim como muitos dos profissionais que estão direta ou indiretamente envolvidos no trabalho contra os incêndios, o presidente do Instituto Homem Pantaneiro, coronel Ângelo Rabelo, diz que as queimadas na região vêm piorando um ano após o outro.
Ele lembra quando chegou ali, na década de 80, “um dos momentos mais violentos da história do Pantanal”, com muita caça ilegal de jacaré e tráfico de animais silvestres.
Com o tempo, a caça e pesca predatórias foram sendo controladas. Agora, o avanço do fogo preocupa: quanto mais longas e mais intensas as “temporadas” de queimadas, menor o intervalo que a natureza tem para se recuperar, colocando em risco um ecossistema único, que abriga quase 4,7 mil espécies de plantas e animais.
Compartilhe