Governador enviou à Alesp projeto para conter rombo de R$ 10 bilhões em 2021 com previsão de destinar recursos de universidades e da Fapesp para o Tesouro. Gestão de SP alegou aos deputados que precisa de dinheiro durante pandemia. Cientista durante a pesquisa sobre a Covid-19
Anton Vaganov/File Photo/Reuters
O projeto de lei 529 enviado pelo governador de São Paulo, João Doria (PSDB), à Assembleia Legislativa, buscando um ajuste fiscal para conter o rombo de mais de R$ 10 bilhões no orçamento em 2021 pode acabar com pesquisas em andamento sobre a Covid-19, alertam especialistas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo (Fapesp).
Isso porque, dentre as propostas apresentadas, uma delas prevê que o superávit de fundos, autarquias e fundações existentes sejam direcionados ao tesouro (a conta única do estado). Se implementada, a medida impactaria diretamente os fundos da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com a transferência de reservas de caixa dessas instituições, que já estavam empenhadas e destinadas a bolsas e estudos em diversas áreas.
Para a geneticista Mayana Zatzs, uma das principais biólogas moleculares do país, se o projeto de ajuste fiscal for aprovado da forma como Doria enviou à Alesp, pesquisas em andamento sobre a resistência de algumas pessoas ao coronavírus e como o vírus se propaga no país podem ser interrompidas com “consequências desastrosas e irremediáveis”.
“A Fapesp não tem superávit. Ela já tem uma estrutura enxuta de administração, que gasta menos de 5% do seu orçamento. O que acontece é que o dinheiro de pesquisas ficam no fundo e são passadas a mim e a outros pesquisadores à medida que precisamos. São recursos empenhados para projetos a longo prazo. Não tem como repassar esse dinheiro, ele já está comprometido com pesquisas! Como ficam as pesquisas para os próximos anos? Será tudo interrompido de forma irreversível”, disse Mayana ao G1.
A cientista tem em andamento pesquisas junto com o Butantan para a produção da vacina contra a Covid-19 e também um estudo sobre brasileiros resistentes à doença.
“Uma das pesquisas que temos em andamento é sobre casais que um deles pegou Covid, e se curou, e outro nem contraiu a doença. Enquanto está todo mundo querendo saber dos mortos, eu quero saber dos que sobreviveram. Queremos entender como pessoas que convivem juntas o dia inteiro, dormem na mesma cama, não contraem a doença. Eu recebi e-mails de mais de 700 casais voluntários e tudo isso vai por água abaixo se o projeto foi aprovado. O dinheiro está lá para a pesquisa e, se for desviado para outro fim, tudo é interrompido da noite para o dia”, diz Mayana.
Outro levantamento que será paralisado, segundo a geneticista, caso as reservas da Fapesp sejam desviadas, refere-se sobre a composição molecular e do DNA de pessoas centenárias que venceram a Covid.
“Recolhemos amostras de sangue de dezenas de pessoas com mais de 100 anos e que se curaram da doença. Queremos saber como isso acontece, por que essas pessoas são resistentes”, afirma ela.
“Uma pesquisa não é como uma casa, que você pode parar de construir e voltar daqui a 3 meses. Tudo isso é investimento em pessoal, equipamentos, expertise, feita por anos e que vai ser interrompido da noite pro dia. Porque o dinheiro está lá destinado para isso e não estará mais. Que garantia teremos que isso poderá continuar. É o maior ataque à Fapesp em 58 anos de história da instituição”, afirma a cientista.
Cientista postou nas redes sociais que redirecionamento de recursos ‘enterra’ Fapesp
Reprodução/Redes Sociais
‘Loucura’
“Já temos uma estrutura enxuta na Fapesp. As universidades, neste ano de 2020, já tiveram corte de recursos imenso devido ao remanejamento para a pandemia. Não tem como cortar mais, se nãoo haverá a interrupção de projetos em andamento. E isso é uma loucura”, diz o médico Jorge Kalil, responsável pela pesquisa sobre o coronavírus no Brasil.
Segundo ele, a Fapesp e o estado de São Paulo “atraem os melhores cientistas e pesquisadores” por destinarem recursos a esses projetos e investirem a longo prazo.
“Temos as melhores pessoas do Brasil aqui com incentivo para isso. Não há como em um momento importante de pandemia, que estamos focados, tirarem exatamente o necessário para a continuidade das pesquisas”, diz Kalil.
O ajuste fiscal enviado por Doria prevê ainda outros pontos, como a extinção de 10 estatais e autarquias, a venda de imóveis, a privatização de entidades, além da concessão de 13 parques à iniciativa privada. (Clique aqui e conheça a íntegra das propostas).
Cientistas e pesquisadores estão preocupados com projeto de ajuste do governo
Abaixo-assinado
Para tentar impedir a destinação dos recursos da Fapesp e de universidades estaduais para outros fins, professores e pesquisadores organizam um abaixo-assinado contra a proposta do governador. Além da reação da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp), 84 pesquisadores assinaram o manifesto.
“Não existe isso (de recursos sobrando para destinar a outros fins). Não há sobra ou superávit para ser devolvido no final do ano. As bolsas para trabalho de estudante, por exemplo, são aprovadas em longo prazo, os projetos não são financiados mês a mês”, disse o pesquisador Paulo Artaxo, vice-presidente da Aciesp. “A medida vai gerar um prejuízo de R$ 1 bilhão no orçamento da USP, da Unesp e da Unicamp”, afirmou.
“A comunidade científica está extremamente preocupada com as consequências dessa medida. Fomos nós que desenvolvemos o novo teste rápido de saliva para Covid. Há projetos sobre as vacinas em andamento. Não tem como paralisar tudo”, assinala o médico Kalil.
O G1 solicitou a posição do governo do estado de São Paulo sobre o impacto das medidas nas pesquisas da Fapesp no pacote de ajuste fiscal, e aguarda retorno.
Aos deputados estaduais, a gestão Doria alegou que a necessidade de redestinar os recursos do superávit dos fundos ao Tesouro “deve-se a medida necessária para fazer frente à imensa pressão orçamentária-financeira inerente à situação de calamidade pública vivenciada pelo País”, buscando ter “maior flexibilidade e agilidade” na alocação de recursos durante a pandemia.
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