Aposto que você nunca ouviu falar de uma Agência Nacional de Barbearias. Aposto também que não conhece uma Agência Nacional de Padarias, de salão de beleza, peixaria ou mesmo de sabonetes. Mas existe uma Agencia Nacional de Cinema (Ancine). Antes que alguém diga “Ah, mas cinema é arte!”, aviso que não há no Brasil uma Agência Nacional do Teatro, Circo ou Literatura. A intenção, aqui, não é sugerir a criação de nenhuma dessas agências ainda inexistentes, tampouco defender a agência de cinema. Não pelo menos na situação em que ela se encontra. Atualmente, a Ancine está sob investigação em que pairam denúncias de atividades ilícitas, favorecimento a artistas alinhados ideologicamente, má gestão do dinheiro público, contratações e promoções de parentes e amigos não servidores, além de desmandos que partem da própria presidência da Agência – esta, aliás, ocupando o cargo de forma indevida.
Há inúmeros e diferentes problemas que cercam a Ancine e eles vêm de longe. Basta se lembrar de que um de seus manda-chuvas, o comunista Manoel Rangel, esteve à frente da Agência por 11 anos consecutivos. Curiosamente, durante mais da metade de seu mandato na Ancine, Rangel esteve viajando pelo mundo, divertindo-se em festivais internacionais. Nos corredores da Ancine, Rangel era conhecido por “estar em viagem“: foram 738 “compromissos” e cerca de R$ 800 mil em diárias de hotéis de luxo. Por tudo isso, além de suspeitas de enriquecimento ilícito, desvios e fraudes, Manoel Rangel deixou o órgão denunciado por prevaricação ao fazer vistas grossas diante da fraude em um edital – um servidor da Fundação Joaquim Nabuco, ligado à Ancine, recebeu ilegalmente R$ 1,7 milhão para financiar seu filme, valor que ultrapassava o limite de R$ 1,3 milhão para o tipo de projeto em questão. No entanto, esse não era o único e maior delito: de acordo com a legislação da Agência, servidores são proibidos de captar recursos públicos. O tal servidor, vale mencionar, é o cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, diretor dos filmes “O Som ao Redor” e “Aquarius“, denunciado ao MPF (Ministério Publico Federal). Em maio de 2019, Kleber Mendonça Filho teve sua condenação publicada no Diário Oficial da União e deveria devolver cerca de R$ 2,2 milhões aos cofres públicos em 30 dias. Não o fez!
O fato é que a Agência Nacional de Cinema é um órgão do governo que provoca a sanha dos aproveitadores. Por conta de taxas dos membros da comunidade cinematográfica, além de altas arrecadações por meio de tributos, a Ancine tem muito dinheiro em caixa. Hoje, uma das maiores fontes de renda são as teles (as empresas de telefonia), que depositam mensalmente milhares de reais na conta do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), outro órgão estatal que praticamente mantém a Ancine viva. Presume-se que a Agência contabilize cifras na casa do bilhão de reais. Não é à toa, portanto, que exista um ou mais grupos bastante interessados na “gestão” dessa fortuna.
Um ano sem presidente
Por mais incrível que pareça, a Ancine está praticamente à deriva e não tem um presidente. Quer dizer, tem, sim, mas ele assume o cargo interinamente e, mais precisamente neste instante, de forma ilegal. Quem exibe o cartão de visitas estampando “diretor-presidente” é Alex Braga, que assumiu essa posição após o presidente Jair Bolsonaro afastar Christian de Castro da função atendendo a uma decisão judicial ainda em processo investigativo. Ocorre que isso se deu há um ano. Vejamos, então, o que diz o estatuto da Agência Nacional de Cinema: o artigo 5º prevê que a Ancine será dirigida em regime de colegiado por uma diretoria composta de um diretor-presidente e três diretores, com mandatos não coincidentes de quatro anos, sendo admitida a recondução. Neste intervalo de quatro anos, Christian de Castro foi afastado do cargo seguindo as normas indicadas no parágrafo 3, que mostra que um diretor da Ancine perderá o mandato nos casos de renúncia, condenação judicial transitada em julgado ou processo administrativo disciplinar. Porém, diante desse afastamento, cabe prestar atenção ao parágrafo 2, onde se explica que, na ausência eventual e impedimento do Diretor-Presidente, a diretoria colegiada deve indicar “anualmente” um substituto, competindo ao Ministro de Estado da Cultura submeter a indicação à aprovação do Presidente da República. Porém, não foi feita qualquer indicação da Diretoria Colegiada, tampouco o encaminhamento ministerial e qualquer aprovação ou novo Decreto presidencial. Em resumo: Christian de Castro foi afastado há um ano; Alex Braga já cumpriu um ano como substituto e, mesmo assim, continua interinamente exercendo a função.
É aqui que começa a festança. Alex Braga, interino e ilegal, usa de seus poderes para colocar ao seu lado, ocupando cargos importantes e estratégicos, pessoas próximas e de seu interesse particular. Recentemente, designou Renata Cristina da Costa Manna para monitorar a revisão, consolidação e revogação de normativos internos da Agência. Renata Manna sequer é servidora efetiva da Ancine, mas possui o que se chama de cacife: faz parte do grupo político da deputada Soraya Santos, igualmente levada à Ancine pelo afilhado Alex Braga. Renata Manna, agora comissionada na Agência, antes era advogada da Companhia Nacional das Escolas da Comunidade (CNEC), cujo presidente é o ex-deputado Alexandre Santos, que vem a ser o marido de Soraya Santos.
Não é difícil perceber que o grupo político da família Santos, aos poucos, está não apenas emplacando vários dos seus, mas também dominando os quadros pessoais da Ancine. Outros exemplos são Gerfânia do Socorro, ex-secretária executiva de Alexandre Santos na CNEC e que assumiu a chefia do escritório da Ancine em Brasília, e Paulo Cesar Mello Braga, também levado para a agência por Alex Braga. Paulo Braga, que é proprietário de uma empresa de TI, foi nomeado assessor da Gerência de Tecnologia da Informação da Ancine. Paulo, atualmente, responde a processo por improbidade, foi filiado ao PMDB e contribuiu financeiramente para a campanha política de Soraya Santos em 2014. Ao que tudo indica, Soraya Santos, uma das mais fiéis defensoras do ex-deputado e hoje encarcerado Eduardo Cunha, parece comandar de perto a Ancine e seu bilionário orçamento. Trata-se, portanto, de um negócio de cinema em família.
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