Pioneiro de transplantes de fígado no Brasil completa 90 anos


Professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, Silvano Raia se mantém ativo e cheio de projetos durante a quarentena Silvano Raia é um dos grandes personagens da medicina e da ciência no país. Foi o primeiro cirurgião a realizar transplante de fígado no Brasil, na década de 1980, e autor da técnica de transplante de fígado intervivos. Foi assim que possibilitou a ampliação de transplantes de fígado para crianças, método que é utilizado mundialmente. Em quarentena há seis meses, hoje completa 90 anos e a agenda continua cheia. “Sou duplamente de risco, por causa da idade e do tipo sanguíneo A, que é mais suscetível a complicações decorrentes da Covid-19, mas continuo trabalhando oito horas por dia”, me contou na manhã de segunda-feira, véspera do aniversário.
Mesmo diante das perdas provocadas pela pandemia, decidiu apostar no otimismo. Em artigo publicado hoje em “O Estado de S. Paulo”, escreve que deveríamos aproveitar a tristeza e o desalento causados pela Covid-19 para criar uma realidade mais justa e com menos sofrimento, aumentando o incentivo à pesquisa e à inovação para abrir novos horizontes para as próximas gerações. O currículo é tão vasto que fica difícil selecionar alguns títulos para ilustrar sua trajetória: membro da Academia Brasileira de Medicina, criador da Unidade do Fígado no Hospital das Clínicas, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo entre 1982 e 1986. Diz estar convencido da importância do exemplo: “recentemente, neurofisiologistas italianos comprovaram, através de ressonância magnética funcional do cérebro, a existência de um núcleo na região temporal que registra cada sensação, cada estado de espírito que percebemos e presenciamos, e é estimulado a repetir ato idêntico. O destino me ofereceu muitos exemplos, através de meus pais, professores, mulher, filhas e colegas, que moldaram o Silvano de hoje”. E completa, bem-humorado: “Tenho dúvidas se o Silvano atual se daria bem com o de 20 ou 30 anos atrás”.
Silvano Raia: médico pioneiro nos transplantes de fígado completa 90 anos
Reprodução Globo News
Tenacidade e perfeccionismo são suas marcas registradas. Lembra que, quando viajou para a Inglaterra para fazer doutorado, “já fui imbuído do desejo de perfeição”, e se vale do filósofo Sêneca para ilustrar seu raciocínio: “não há ventos favoráveis para o marinheiro que não sabe para onde vai”. Nesse período, não só viveu a efervescência cultural londrina, como se deparou com o potencial do campo de transplantes de fígado. Também entendeu que a complexidade de uma cirurgia de tal calibre necessitava de uma equipe com perfil multidisciplinar, com especialistas de áreas distintas, diferente do padrão vigente no Brasil, no qual o cirurgião reinava absoluto. Tem a sua assinatura o transplante para crianças, no qual utilizava apenas um segmento lateral do fígado da mãe, do pai ou doador, equivalente a 30% do órgão. “Observou-se que o órgão crescia até o tamanho necessário para a idade da criança, ao mesmo tempo em que o doador se recuperava sem sequelas”, ensina. Quero saber como aguentava o desafio de cirurgias que, no começo, levavam mais de 20 horas: “era tanta adrenalina, tensão e, quando dava certo, felicidade, que não sentia cansaço”.
Atualmente, dedica-se a um audacioso projeto com a geneticista Mayana Zatz que, se à primeira vista soa como ficção científica, na vida real poderá significar um novo destino para as pessoas que dependem de hemodiálise. Tentando resumir uma longa explanação: o objetivo é criar suínos geneticamente modificados de forma que seus órgãos possam ser transplantados para seres humanos sem rejeição. No jargão da ciência, significa desativar genes (knockout) que causam rejeição e alterar genes (knock-in) que facilitem a assimilação do órgão. E por que o rim? Porque se trata de um órgão onde essas variáveis podem ser mais bem controladas. Engajado na empreitada, a energia de Salvino Raia é contagiante. Para encerrar, pergunto que conselho daria a um jovem médico: “diria para se orgulhar muito da profissão; lembraria que sua dedicação não deve mirar apenas objetivos financeiros; e pediria para nunca se contentar com os resultados atingidos. A vida se alimenta de amor e nossa profissão, bem exercida, faz com que sejamos presenteados com muito amor”, afirma. Parabéns, doutor!

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