TCU e MP apontam desperdício de quase 600 mil litros de plasma no Brasil desde 2017


Órgãos pedem que Ministério da Saúde tome medidas para suprir produção sem desperdiçar produto das doações de sangue. Imunoglobulina, um dos hemoderivados, está em falta no país por falta de estrutura para produção. Instalações da Hemobrás
Reprodução/TV Globo
O Tribunal de Contas da União (TCU) e o Ministério Público (MP) pedem ao Ministério da Saúde que seja resolvido o desperdício de milhares de bolsas de plasma no Brasil. O plasma é um subproduto sanguíneo utilizado na produção de derivados como a imunoglobulina, que pode ser usada no tratamento de imunodeficiências.
Desde 2017, segundo o TCU e o MP, foram perdidos 597.975 litros de plasma no país, o que equivale ao material 2.718.067 doações de sangue. Apenas com o que é desperdiçado em um ano seria possível produzir 222 mil gramas de imunoglobulina. O total é suficiente para garantir, em média, o tratamento para 530 adultos por ano, sem contar outros tipos de proteínas que poderiam ser utilizadas com o plasma desperdiçado.
Os hemoderivados são medicamentos essenciais no tratamento de algumas doenças, principalmente as imunodeficiências primárias ou secundárias, as doenças hereditárias e adquiridas da coagulação, como as hemofilias A e B. Essas doenças ocorrem pela falta de alguma proteína cuja fonte principal seja o plasma humano, como por exemplo a imunoglobulina, a albumina e o fibrinogênio.
Uma das soluções para resolver o problema foi criada em 2004, com a implementação da Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás). Um dos pedidos do TCU e do MP é para que os problemas operacionais da empresa sejam resolvidos (leia mais abaixo).
O Ministério da Saúde afirmou que “não houve prejuízo na atenção hematológica quanto ao uso de medicamentos hemoderivados e não há relatos de desabastecimento de fatores de coagulação para o atendimento para esses pacientes. Todos os apontamentos serão respondidos ao TCU no prazo determinado pelo órgão”.
A Hemobrás foi procurada pelo G1 e não respondeu aos questionamentos.
Plasma é a parte líquida do sangue. Ele corresponde a 55% do sangue.
Reprodução/TV Globo
Hemocomponentes x hemoderivados
Antes de seguir, é fundamental explicar que o sangue doado não está completamente sendo jogado fora. Os hemocomponentes – o sangue total, o plasma, os concentrados de hemácias e os crioprecipitados – podem ser separados por processos físicos, como centrifugação e sedimentação, de acordo com informações técnicas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Já os hemoderivados, que são produtos do plasma do mesmo sangue, precisam de processos físico-químicos e biotecnológicos, procedimentos industriais. O Brasil chegou a investir na Hemobrás, a empresa estatal que deveria produzir esses medicamentos. O projeto não saiu como deveria do papel e já foi alvo de investigação sobre esquema de superfaturamento.
“Sumiram com o dinheiro. Eles [Hemobrás] tiveram um aporte enorme, construíram uma estrutura física e o dinheiro sumiu. Não fizeram o processo de importação de metodologias e até hoje existe edital aberto para comprar material novo”, disse Gesmar Rodrigues Silva Segundo, coordenador do Departamento Científico de Imunodeficiências da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI).
Representação do TCU e do MP
Diante disso, o TCU e o MP entraram com uma representação contra a pasta em 31 de julho deste ano. Eles pedem:
Adoção de providências contra as perdas de plasma estocado e a expiração de validade;
Contratação de serviços de fracionamento para vazão dos estoques;
Adoção de medidas administrativas pelo ministério para retomada das atividades da Hemobrás e atendimento prioritário para os pacientes do SUS.
Segundo os dois órgãos, 156.112 bolsas de plasma perderam a validade até 20 de fevereiro deste ano nos estoques da Hemobrás. Até dezembro, o número pode subir para 321 mil, e mais 200 mil podem ser perdidas até outubro de 2021.
Enquanto isso, no mesmo dia que o TCU e o MP entraram com a apresentação, o Ministério enviou um ofício aos estados com os medicamentos que são responsabilidade federal. A imunoglobulina, um hemoderivado, é um deles. De acordo com o coordenador da ASBAI, o país acaba importando o produto.
“É muito caro. O governo paga mais de R$ 800 por frasco. No resto do mundo, falta plasma para a produção de insumos. O que acontece hoje é que o Brasil briga com outros países para comprar a imunoglobulina, mas como o dólar está muito alto, pagamos muito caro”, disse.
No documento que enviou aos estados, o ministério diz que chegou a aprovar a aquisição de imunoglobulina. As duas empresas estrangeiras contempladas prometeram mais de 160 mil frascos até agosto, mas não conseguiram cumprir com o cronograma de entrega devido à pandemia do novo coronavírus.
Problemas anteriores
No final de 2018, a Justiça Federal em Pernambuco (JFPE) condenou dois ex-gerentes da Hemobrás. Marisa Peixoto Veloso Borges e Guy Joseph Victor Bruere foram denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) e condenados por crime licitatório. Segundo a investigação, esquema resultou em superfaturamento de R$ 5,2 milhões.
A sentença foi proferida em 26 de outubro daquele ano. A condenação foi um desdobramento da Operação Pulso, deflagrada em dezembro de 2015, que investigou uma organização criminosa que atuava na Hemobrás por meio de fraudes em licitações e contratos.
Na época, durante o cumprimento de um mandado de busca e apreensão, agentes da PF flagraram maços de dinheiro sendo arremessados da janela do apartamento do ex-diretor da Hemobrás Rômulo Maciel Filho. Ele era réu na operação, mas faleceu durante a tramitação do processo.
As investigações apontavam que as irregularidades foram cometidas entre novembro de 2013 e maio de 2015. O Consórcio Bomi-Luft-Atlantis havia sido contratado para fazer a coleta de plasma nos hemocentros do país e concentrá-los no centro de distribuição em Itapevi, em São Paulo, onde a carga era organizada e remetida à fábrica da Hemobrás, na cidade de Goiana, no Grande Recife.
Um dos prejuízos apurados nas investigações foi a impossibilidade de produção e venda de alguns dos medicamentos feitos a partir do plasma, os hemoderivados. O problema persiste até hoje.
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